quarta-feira, 21 de maio de 2008

França, maio de 1968: a promessa da revolução


Por Luis Siebel


As comemorações dos 40 anos do maio de 68 na França não deixam dúvidas quanto aos importantes símbolos que se constituíram nas universidades, fábricas, barricadas de rua que surgiram desse processo de luta de classes e em todo o mundo. Buscaremos aqui contribuir com um sentido particular: entender como uma poderosa promessa de revolução conseguiu ser transformada pelos grandes meios e parte considerável da esquerda numa “crítica cultural” que colocou na “pauta” o ano de 68 e, no limite, um movimento progressivo para o próprio capitalismo.


Se hoje ressurge o movimento estudantil em nosso país, temos a certeza de que a linguagem do ano 68 servirá de grande exemplo. Temos, no entanto, que procurar nos lugares certos. Os intelectuais “progressistas” que ainda não se colocaram ao lado de Sarkozy em sua cruzada contra 68, o avaliam como um movimento cultural que democratizou a sociedade francesa, levado por estudantes contestadores, que ao modo de Dani le Rouge [1], hoje estão acomodados nos parlamentos e instituições europeus. Pela direita ou pela esquerda, ambos os discursos partem de um denominador comum: expulsam da história o movimento operário. A expressão dessa visão “culturalista”, está bem clara aqui: “O espírito de 68 é uma bebida potente, uma mistura apimentada e desejável, um coquetel explosivo composto por diversos ingredientes. Um de seus componentes – e não o menor – é o romantismo revolucionário, ou seja, um protesto cultural contra os fundamentos da civilização industrial/capitalista moderna, seu produtivismo e seu consumismo, e uma associação singular única e sem gênero, entre subjetividade, desejo e utopia [2] [...]”

Pelo contrário, as manifestações operárias e estudantis foram acontecimentos decisivos para a história francesa e a luta de classe internacional, pois abriram um ciclo de recomposição massivo de ofensiva do trabalho contra o capital: um questionamento dos mecanismos de exploração capitalista partindo da “ordem fabril”, um questionamento da sangrenta dominação imperialista e um questionamento dos agentes da burguesia no movimento operário que defendiam o reformismo e a conciliação de classes, começando pelo stalinismo. Demonstraremos, contra esse tipo de concepção “inovadora”, que o motor fundamental do maio francês não se restringiu ao que se passa na cabeça dos reformadores da ordem social existente, pois foi, acima de tudo, como afirmou Jean-Pierre Duteil, uma mostra de que “a luta de classes não era uma estante do departamento de antiguidades, a classe operária não fez sua despedida”, ou seja, marca a entrada em cena de um movimento operário extremamente moderno e concentrado, que se colocava como sujeito potencial não de uma premissa teórica, como nos tempos de Marx, mas como um sujeito fundamental na abolição da sociedade de classes; segundo o historiador Perry Anderson, “A revolta de maio de 68 na França foi um marco histórico decisivo. Foi a primeira vez em cerca de cinqüenta anos que um levante revolucionário de massas teve como palco um país capitalista avançado - em um período de paz, num contexto de prosperidade imperialista e democracia burguesa” [3].

O lugar de 68 na história

Como um acontecimento dilatado no tempo, 68 se expande no mundo, colocando assim em posição defensiva a “ordem imperialista” do pós-guerras, estabelecida simbolicamente pouco mais de 20 anos antes por Churchill, Roosevelt e Stálin. Os acontecimentos da luta de libertação da Argélia, a guerra do Vietnã e a ofensiva militar contra o imperialismo nesse ano, os profundos processos da luta de classes na América Latina que se gestavam e as experiências dos processos revolucionários do pós-guerra, ainda que de forma distorcida pelos “teoremas de Yalta” e obscurecido o debate estratégico por um marxismo revolucionário genuíno, tornou possível uma “pressão cultural” muito distintas das “revoluções dos costumes” de hoje. A capacidade expansiva da luta do maio francês prenunciou: Ce n’est qu’un début, continuons le combat!, e pouco depois os operários de Turim colocaram a sua maneira que a Lotta continua! [4].

Na França, ainda que por distintas razões não estivesse naquele momento em jogo a “revolução imediata”, o que D. Bensaïd chamou de ensaio geral revolucionário seguindo a “velha” terminologia de Lênin em 1905, estava colocada claramente a possibilidade de colocar abaixo, partindo das fábricas e das ruas, o regime gaullista. 68 é, sobretudo, um novo marco, após anos de crescimento capitalista “pacífico”, pois colocou novamente em cena uma luta de classes, de formas mais contemporâneas a nós do que aos communards de 1971, mas não menos “enfática” no que diz respeito às contradições fundamentais da sociedade capitalista; esse ciclo de insubordinação política contra o regime burguês colocou em xeque o papel das velhas direções do proletariado, o stalinismo e a social-democracia e também a CGT.

Parecia que nos anos 1960 a classe operária estava adormecida de forma duradoura sob o bonapartismo de De Gaulle e na Europa. Mas, desde o ponto de vista quantitativo o ano de 68 da França representou o movimento de greves mais imponente na história do movimento operário ocidental, superior ao ano 1969 na Itália (o “outono quente”) e também do importante movimento do ano 1926 na Inglaterra [5]. Ou seja, sem restabelecer a centralidade do protagonismo operário é impossível entender o alcance profundo do maio francês e de suas repercussões para a luta de classes. É impossível entender ao mesmo tempo quatro décadas dedicadas “intelectualmente” para liquidar o proletariado como ator do “ensaio geral”.

“O verdadeiro perigo começou quando os operários entraram em cena. Primeiramente, no dia 13 de maio, uma grande manifestação de solidariedade depois da noite das barricadas e depois, nos dias seguintes, quando os operários mais jovens, sem consultar os seus sindicatos, decidiram seguir os estudantes. Em 16 e 17 de maio, quando as grandes forças da CGT e CFDT [federação de sindicatos], entendendo que sua credibilidade estava muito abalada, chamam a generalização da greve. Foi nesse momento que apareceu claramente a fragilidade do Estado. A polícia podia dispersar atos, destruir dez ou vinte barricadas, mas não podia controlar cem ou quinhentas fábricas, oficinas, lojas, bancos e estações de trem. Muito menos poderia trazê-los de volta ao trabalho.”[ Maurice Grimaud, ex-chefe de polícia de Paris, entrevista de 1988. []]

Movimento operário e luta de classes

Se os estudantes impuseram (contra) as organizações sindicais uma frente-única, as massivas jornadas de 13 de maio e a orientação das fábricas nos setores mais avançados da classe colocarão a essas mesmas direções sindicais um enorme processo de greve geral eminentemente política que sacudirá no ar o regime gaullista. Esse processo foi combatido de todas as maneiras pelo PCF e a CGT, buscando isolar o proletariado da vanguarda estudantil, tal como afirma um calunioso artigo do L’Humanité, jornal do PCF, na voz de seu chefe Georges Marchais: “Como sempre, quando avança a união das forças operárias e democráticas, os grupelhos ‘gauchistes’ [‘esquerdistas’] se agitam. Se encontram particularmente ativos entre os estudantes. (...) É preciso desmascarar esses falsos revolucionários que objetivamente servem aos interesses do poder gaullista e dos grandes monopólios capitalistas” [6].

Nas fábricas, os jovens trabalhadores eram a vanguarda indiscutível da insubordinação ao capitalismo e as direções oficiais. A grève sauvage (greve selvagem) se expande e cria lutas exemplares com na Sud Aviation em Nantes e na Renault-Cléon. O fato de que a burocracia sindical tenha controlado o desenvolvimento do movimento de greves e tenha literalmente prendido os trabalhadores em suas fábricas ocupadas, para evitar que se coordenassem entre si ou mesmo com os estudantes e tomassem assim o controle, não significa que conseguiram acabar com a determinação do proletariado convencido da possibilidade e da necessidade de arrancar como mínimo concessões significativas: “Pela sua determinação [os estudantes] balançaram a opinião pública a seu favor e forçaram os sindicatos a organizar atos de massa e a greve geral que até então evitavam. A apatia das forças sociais, mantida pela estratégia reformistas destas organizações é sem sombra de dúvidas uma das maiores garantias do regime hoje” [7].

Confiantes na sua capacidade de controle do processo, as confederações sindicais e a CGT abrem as negociações da rue de Grenelle (Ministério do Trabalho) em 25 de maio. Após 24 horas de negociações conseguem concessões mínimas da patronal e pensam que poderiam terminar com a greve: “Os patrões e o Estado estão em uma encruzilhada. A burguesia, confusa, chama os ‘representantes das organizações dos trabalhadores’ para retomar o controle. Sabem que em um período de profunda crise social as direções reformistas constituem a melhor e a última alternativa do regime capitalista: enlameadas no parlamentarismo, escrupulosamente respeitosas com a legalidade burguesa, essas direções sabem como canalizar a combatividade das massas e tentarão fazê-lo com objetivos compatíveis com a sobrevivência do sistema” [8].

De Gaulle e os stalinistas, e estes últimos mais uma vez rememorando a sua traição histórica, como nos processos revolucionários de 1935-1937, conseguem salvar a classe dominante do espectro revolucionário. Dividem-se as tarefas: o stalinismo se encarregou de atomizar o movimento operário e De Gaulle acorda com as distintas frações burguesas um bloco social reacionário. Em um comunicado de rádio no dia 30 de maio, a poucas horas de voltar da Alemanha, De Gaulle tenta dar uma saída formalmente constitucional e “democrática” para terminar com o movimento que o ameaçou durante duas longas semanas!

Nos dias seguintes se precipitaram as negociações por ramo de produção entre a patronal e a burocracia, que obtém aumentos salariais e maiores direitos sindicais nas empresas. Após duas semanas de greve a burocracia consegue que muitos voltem ao trabalho e no início de junho cessam as movimentações na EDF-GDF (setor energético), no metrô de Paris e nos correios as assembléias votam o retorno ao trabalho e também em outros setores importantes como os mineiros, ferroviários e operários da construção civil. Apesar de tudo, os grevistas não retomaram o trabalho facilmente, já que em muitos locais e fábricas se converteram em pontos de resistência grevista frente à pressão das direções; porém, frente à ausência de perspectivas, inclusive esses pontos de resistência terminaram votando um amargo fim de greve.

A impressionante vitória da burguesia em eleições celebradas após poucas semanas de um dos maiores processos políticos que atravessou o país no século XX não apaga as marcas profundas que deixaram as greves operárias. Ainda que estivesse respaldada pela eficiente mecânica constitucional gaullista da V República, que permitiu a burguesia enfrentar a irrupção operária pós-68, tardarão anos para resolver a crise aberta durante aquelas semanas de greves generalizadas.

Em dez de maio, um conhecido comentador de futebol foi enviado para o Bairro Latino para cobrir os eventos da noite e reportou: ‘Agora a CRS [9] está atirando, estão destruindo a barricada – meu Deus! Uma batalha acontece. Os estudantes estão contra-atacando, podem-se escutar os barulhos – a CRS recua. Agora estão se reagrupando e preparam para atacar novamente. Os moradores jogam coisas de suas janelas contra a CRS – oh! A polícia retalia, atirando granadas nas janelas dos apartamentos...’ O produtor do programa interrompe: ‘Isso não pode ser verdade, a CRS não faz coisas como essa!’; “Eu estou dizendo o que vejo...”. Sua voz desaparece. O programa o cortou. [10]

O movimento estudantil e a luta de classes

Já desenvolvemos em artigos anteriores aspectos do que se tornou a “universidade de massas” no pós-guerra e nos cabe aqui observar as questões políticas [11] mais importantes que fizeram com que o m.e. fosse parte fundamental dos processos de maio, tanto como “detonadores” diretos quanto como parte da vanguarda política. Por exemplo, a universidade Sorbonne era uma das formas mais desenvolvidas de “duplo poder”; ainda que os trabalhadores fossem a “força vital” de 68, não se pode desconsiderar que a política das direções oficiais conseguiram que não se desenvolvessem formas de combate nas fábricas tais como colocaram em prática os estudantes.

As leis da burguesia perderam sua vigência nos limites da universidade, ao contrário do processo nas fábricas no qual se generalizaram as ocupações sem que tivessem, no entanto, um norte político ofensivo: a polícia não entrava na universidade, Cohn-Bendit, que mais tarde foi banido da França como um “judeu-alemão” subversivo, vivia ali “tranquilamente”; era o auto-governo da Sorbonne, que não prestava a mínima atenção às decisões governamentais sobre a educação. Exemplos como esse, que tiveram o seu prólogo no movimento 22 de março, na universidade de Nanterre, se generalizaram e muitos de seus aspectos “culturais” estavam diretamente ligados a perspectiva de uma luta pela completa transformação da sociedade de classes. A universidade devia ser transformada de uma fábrica que produz robôs em um centro de organização da atividade anti-capitalista, um bastião da educação revolucionária; mas também sabiam os estudantes, que “poderiam conquistar algumas concessões nos limites da universidade, mas sem o tremendo levante da classe operária, fariam muito pouco. Não havia dúvidas que o centro da luta passaria dos estudantes para os trabalhadores. E naquele momento, se tornou em primeiro lugar de como os estudantes se ligariam com essa luta, como expressariam sua solidariedade com os trabalhadores, como encorajar a sua luta e fazer qualquer coisa possível para influenciar o movimento para um curso revolucionário [12]”

“A Assembléia Geral de 13 de maio decidiu que a Universidade de Paris se declara uma universidade autônoma e popular e estará permanentemente aberta, dia e noite, para todos os trabalhadores.

A Universidade de Paris será administrada pelos Comitês de Ocupação e Administração constituído por trabalhadores, estudantes e professores.”

Como afirmou em 19 de maio o comitê de ocupação da Sorbonne, “A ocupação que começou em 13 de maio abriu um novo período na crise da sociedade moderna. Os acontecimentos que hoje tomam a França antecipam o returno do movimento revolucionário do proletariado em todos os países. O movimento que já avançou da teoria para a luta nas ruas hoje avançou para a luta pelo controle dos meios de produção. O capitalismo moderno pensou que tinha terminado com a luta de classes – mas começou novamente! O proletariado supostamente não existia mais – e aqui está de novo!

Entregando a Sorbonne, o governo esperava pacificar a revolta estudantil, que já havia conquistado regiões de Paris nas barricadas em uma noite inteira após serem derrotados com grande dificuldade pela polícia. A Sorbonne foi dada aos estudantes na esperança de que pacificamente iriam discutir os problemas universitários. Mas os ocupantes imediatamente decidiram abri-la ao público para discutir os problemas gerais da sociedade. Era assim o prenúncio de um conselho, um conselho no qual até os estudantes quebravam a sua miserável condição de ‘estudantes’. [13]”

Concluímos não somente deixando explícitas as imponentes formas que a luta de classes assumiu de 68, pois abrimos novamente as páginas de nosso jornal para a recuperação dos exemplos de luta, debates estratégicos e fragmentos de subversão da política; também queremos evidenciar um processo “subterrâneo” anterior ao maio, que nos diz muito da maneira com a qual se pode reconstruir as nossas ferramentas de luta atuais. Não nos convencemos facilmente, como os “culturalistas” de hoje de que 68 foi uma “explosão juvenil” solta no espaço. Durante todos os anos 1960, por exemplo, a juventude do PCF foi golpeada por uma vanguarda que saída de suas próprias fileiras e prestava solidariedade ativa e antiimperialista a luta de independência da Argélia. Durante anos a fio a juventude viu as guerras civis levadas pela burocracia stalinista na URSS e nos países do Leste contra os trabalhadores, seja em 1956, seja na “Primavera de Praga” no mesmo ano. Outros exemplos não faltarão para demonstrar os “momentos preparatórios” de 68 estiveram plenos não somente do sentido de resistência, mas da necessidade do porvir.

Communiqué

Camaradas,


Considerando que a fábrica Sud-Aviation em Nantes foi ocupada há dois dias pelos operários e os estudantes desse cidade, e que hoje o movimento se espalha por várias fábricas (Nouvelles Messageries de la Presse Parisienne em Paris, Renault em Cléon etc.),


O COMITÊ DE OCUPAÇÃO DA SORBONNE chama pela imediata ocupação de todas as fábricas na França e pela formação de Conselhos Operários.


Camaradas, espalhem e reproduzam esse chamado o mais rápido possível


Sorbonne, 16/05/68, 3:30 pm


[1] Daniel Cohn-Bendit, liderança estudantil de grande expressão, parte do movimento 22 de março e hoje parlamentar.

[2] Recentemente, em uma atividade política do PSTU, o professor Henrique Carneiro, intelectual ligado ao partido, afimou teses com o mesmo conteúdo; M. Löwy O romantismo revolucionário do Maio de 68. Publicado em Thesis Eleven, no. 68, fev/02.

[3] P. Anderson Considerações sobre o marxismo ocidental. Brasiliense, 1989, p.135.

[4] Este é só o início, continuemos o combate! / A luta continua! Em recente entrevista, o intelectual Chico de Oliveira afirmou: “De qualquer modo, a interpretação mais aceita é que 68 abvriu as portas de umma espécie de revolução cultural no Ocidente, na qual se inscreveriam temas como o da sexualidade. Entretanto, dizem Rancière e Zizek que todo mundo esquece que 68 foi uma revolta política. Que ela tenha tido efeitos vagamente culturais nem precisa ser dito, pois toda revolução política tem efeitos culturais. Na França, essa foi marcadamente uma revolta anticapitalista. Os atores centrais não foram os estudantes, mas os operários”. Caderno 2, Estado de SP, 11/05/08.

[5] A França contabilizou em torno de 150 milhões de dias de greve como mínimo, enguanto na Itália 37 mi.e 14 mi. na Inglaterra.

[6] G. Marchais, “De faux révolutionnaires à démasquer”, L’Humanité, Paris, 03/05/68.

[7] “A luta continua”, Juventude Comunista Revolucionária, (organização que se formou como fração de esquerda da juventude do PCF em 1965 e depois fundou a LCR), maio/68.

[8] “Trabalhadores, estudantes !”, JCR, 21/05/68.

[9] Tropa de polícia francesa que destacada para reprimir os conflitos de rua.

[10] Relato de Jean-Jacques Lebel para Tariq Ali, Maio de 68, Para onde foi toda a raiva?, The Guardian, 22/03/08.

[11] A luta de classes no ano 68 e o movimento estudantil, Palavra Operária nº31. Nos dois últimos artigos desenvolvemos aspectos da resistência estudantil contra a ditadura militar, dando alguma atenção ao debate estratégico que surgia na vanguarda e no m.e., processo este que ocorreu de forma muito similar na França.

[12] Mary-Alice Waters The french student revolt. International Socialist Review

[13] Informe sobre a ocupação, Paris, 19/05/68

http://www.ler-qi.org/

sábado, 17 de maio de 2008

Imagens do Maio de 68


quarta-feira, 14 de maio de 2008

40 anos do Maio de 68: reflexões sobre espontaneidade e organização


O ano de 1968 foi sacudido por grandes mobilizações da juventude e dos trabalhadores em todo o mundo. Diversas lutas eclodiram em todos os cantos, tendo sobretudo jovens trabalhadores e estudantes, como seus protagonistas. 1968, foi o ano dos Panteras Negras e das mobilizações contra a invasão do Vietnã pelos EUA, de lutas estudantis e operárias na Alemanha, Itália, Bélgica, Espanha, Japão e Canadá, que questionaram o sistema capitalista e a dominação burguesa.

Além disso, as agitações na Polônia, na Iugoslávia e, sobretudo, na Tchecoslováquia, cenário da Primavera de Praga interrompida brutalmente pela invasão soviética em agosto daquele ano, colocaram em cheque também a burocracia dos Partidos Comunistas e os regimes do leste europeu.

No “terceiro mundo” também explodiam mobilizações: Egito, Senegal, México, Chile, Argentina e, evidentemente, Brasil. Em nosso país, 1968 deixou várias marcas, a passeata dos 100 mil no Rio de Janeiro, o 1° de Maio na Praça da Sé, em São Paulo, e foi em 68 também que a Ditadura Militar decretou o Ato Institucional n° 5 (AI-5), restando aos lutadores e militantes de esquerda a opção pelo enfrentamento armado contra o regime.

Mas foi na França, mais especificamente no mês de maio, que explodiu um processo de lutas entre a juventude e os trabalhadores que abalaram o país por algumas semanas. Foram greves, ocupações, manifestações, barricadas, enfrentamentos e lutas de rua que se alastraram por toda a França e colocaram o governo em cheque.

Nas universidades e nas fábricas, luta operária-estudantil

Em 1968 a França era um país abalado pela crise. A revolta que estourou ao contrário de ser uma simples obra do acaso, é fruto de um processo histórico, de uma profunda crise que vivia a França desde 1945, após a sua “libertação” com o fim da 2° Guerra Mundial.

No plano político, vivia um regime semi-ditatorial do General De Gaulle, tinha perdido suas principais colônias, Argélia e Vietnã, envolvendo-se em guerras de efeitos desastrosos. No plano econômico também se enfrentava um quadro bastante crítico: baixos salários, grandes jornadas de trabalho, um alto nível de desemprego, falta de habitação e infraestrutura, etc. A própria constatação desta crise, joga ralo abaixo a tese de que a revolta de 68 foi apenas motivada pela busca de liberdade da juventude.

No sistema educacional a crise também se refletia. Nas universidades não haviam vagas, principalmente para os filhos de operários e camponeses que chegavam. Situação que leva o Ministro da Educação a anunciar uma reforma no sistema de ensino, que introduziria exames de seleção, hierarquização dos estudantes e desqualificação de diplomas de várias faculdades. E foi esta a faísca que acendeu a bomba da revolta entre a juventude francesa.

É neste clima que aflora o movimento de Maio de 68. Os estudantes levantam barricadas nas ruas e são duramente reprimidos pela CRS (troque de choque da polícia francesa). Em paralelo a isso, estouram grandes greves em diversas empresas importantes. Uma marcha de estudantes e trabalhadores, que reúne cerca de 1 milhão de pessoas faz o governo do General De Gaulle recuar.

Diversas faculdades são ocupadas pelos estudantes, a Sorbonne torna-se um local de intensos debates e atividades, assim como Censier (Faculdade de Letras da Universidade de Paris) e diversas outras faculdades e escolas. As greves operárias se generalizam, cerca de 9 milhões dos trabalhadores da França estando parados (dois terços da força de trabalho naquele momento), muitos destes ocupando as fábricas, a revelia do reformismo da CGT (maior central sindical da França à época), controlada burocraticamente pelo Partido Comunista Francês (PCF), alinhado com Moscou.

Constituem-se os “comitês de ação dos trabalhadores e estudantes”, a agitação nas fábricas mesmo reprimida pela direção da CGT constrói um amplo sentimento de solidariedade entre os trabalhadores e estudantes. O PCF, que a todo momento vai jogar contra o movimento é sumariamente refutado pelos estudantes, mas consegue manter seu controle burocrático (através da CGT) em boa parte das fábricas, sufocando as lutas. Segundo seus dirigentes, não haviam condições para uma “revolução socialista”, apenas para avanços nas reivindicações no campo econômico e educacional.

Mas porque exatamente a insurreição dos estudantes e trabalhadores franceses não se transformou numa revolução social, que transformasse radicalmente sa relações políticas, econômicas e culturais na França? O papel contra-revolucionário do PCF, com certeza é um fator importante, mas não é o fundamental, e explicar a derrota do Maio de 68 apenas com essa justificativa, é cair de certo modo em um oportunismo, que não nos permite enxergar que a causa principal da derrota reside nas próprias fraquezas do movimento, que não conseguiu superar suas contradições. A discussão essencial para compreender este tema, é entender as confusões existentes no debate sobre espontaneidade, organização e consciência.

Um falso dilema: espontaneidade versus organização

A lição fundamental deixada pelo Maio de 68 reside na discussão sobre a função da espontaneidade das massas, o papel da organização/partido e da consciência. Isso não nega outros elementos introduzidos pela revolta dos estudantes e trabalhadores franceses. A própria reaparição pública do anarquismo é um outro legado do Maio de 68, contudo, é bom pontuar que, o que reapareceu foi apenas uma parte do anarquismo, que servia para municiar o arsenal crítico que tinha como alvo o PC.

O anarquismo de 68, que muitos chamaram de “neo-anarquismo”, é ao mesmo tempo a negação do economicismo do PC para ir ao outro extremo, o culturalismo. É um anarquismo que deixa de se preocupar com as questões sócio-econômicas para ficar restrito aos trabalhos culturais. Rompe com o dogmatismo econômico para chegar ao dogmatismo cultural. Este anarquismo pouco tinha a ver com a tradição de um Bakunin, um Malatesta, um Maknho ou um Durruti.

Do Maio de 68 na França fica a lição de que não podemos contar apenas com a espontaneidade, nem podemos confundir todas as formas de organização como sinônimo de burocratismo. A consciência, acreditamos, joga um papel fundamental para qualquer luta, pois ela quem garante que possa haver conseqüência, acumulo. E é na própria dinâmica das lutas que ela é construída.


Jornal Socialismo Libertário - n° 17
www.vermelhoenegro.blogspot.com


1968 E O MOVIMENTO ESTUDANTIL NO BRASIL

Algumas velhas idéias para novos combates

Por Luis Siebel


O ano 1968 nunca deixou de criar as mais distintas desavenças em todas as ocasiões em que surgiu como ponto em disputa. Nos seus 40 anos, todas essas vozes foram amplificadas: vemos um Sarkozy discursando que a grande tarefa de seu governo é acabar de vez com as bases criadas em 1968; um líder estudantil das barricadas de Nanterre, Cohn-Bendit, convertido em inofensivo deputado do parlamento europeu “recomendando” aos jovens esquecerem tudo o que se criou ou se abandonou como perspectiva de luta.

Vemos, também no Brasil, vários intelectuais burgueses recomendando as receitas de seus pares de além-mar como resposta aos novos fenômenos de luta estudantil iniciados em 2007; digam o que quiserem, pois 68 não deixará de ser o ano em que a luta de classes se entrecortou com o fim do “dourado” ciclo econômico capitalista depois da II Guerra, cheio daqueles símbolos que inspiram novos combates: as greves de massas, a luta antiimperialista – da Argélia ao Vietnã –, o desenvolvimento da revolução cubana, a primavera da Praga... e no meio disso, estava uma universidade que, como dizemos, era “caixa de ressonância” dos fenômenos da luta de classes.

No Brasil, a luta estudantil se combinou com uma resistência operária que, mesmo em seus momentos mais frágeis, soube se reerguer, e, a exceção do período de 1969-72 – fruto da derrota –, foi ininterrupta em seus fluxos e refluxos até o último grito da ditadura. Aquele movimento tinha como tarefa reconstruir em um período curtíssimo as formas da resistência para passar à ofensiva contra o inimigo que ainda não terminava de se constituir. Se falhou nessa tarefa, nos deixou fragmentos que merecem ser recuperados, debatidos e aprofundados, pois sob todos os aspectos são um exemplo de subversão da “política rotineira” dos setores mais vacilantes do movimento estudantil atual. No ano passado começamos uma reflexão sobre esta questão e queremos aqui aprofundar alguns elementos, tomando essas lições como tarefa militante.

O longo ascenso operário e da luta de classes que se desenvolve no pré-64 foi traído pelas direções do movimento operário [1], sendo que de 1966 a 1968 houve um importante processo de resistência. Como diziam os militantes trotskistas agrupados na Organização Comunista 1°. De Maio, “O pavor da burguesia levou à sua união e a entrega do poder à linha-dura castelista que, durante curto espaço de tempo, enfeixou forças para golpear o movimento de massas, mas logo se viu às voltas com, novas crises, acirramento das contradições inter-burguesas, ameaças e concretizações de novas movimentações de massa.” [2]

1. Idéias

Uma das marcas do processo em todos os âmbitos do movimento operário e estudantil é a pressão para ruptura com a profunda experiência anterior. Os adjetivos serão muitos: pacifismo, reformismo, cupulismo, em suma, todas as correntes de vanguarda buscavam superar o PCB e trabalhavam em criticar as suas bases. Entretanto, ainda que houvesse tendências progressivas que apontavam para um enfrentamento direto contra a ditadura, a parte hegemônica das dissidências assumiu a estratégia da guerrilha, que tem como pressuposto o abandono da luta de massas e do proletariado, e este processo foi interrompido quando do “golpe dentro do golpe” em 68/69.

Explicando: “A crítica à política de alianças proposta pelo PCB era feita tradicionalmente pelos trotskistas há várias décadas. Essa crítica seria retomada no final dos anos 50 e durante toda a década de 60 por diversos grupos de esquerda que então foram se formando.” [3] Soma-se a isso o elemento de que “Após 64 com o golpe militar de direita, o reformismo – representado pela ‘burguesia nacional’ e cujos órgãos, PTB, PCB, PSB, Sindicatos etc., eram sua base social – é alijado praticamente do cenário político”. [4]

Do ponto de vista das organizações políticas do movimento estudantil, o congresso da UNE em 68 era enfático: "Temos uma longa luta pela frente e só agora o movimento estudantil começa a se libertar de fato dos seus vícios de origem, da ideologia das classes dominantes que o alimentou.” Se isso serviu tanto a guerrilha quanto aos iniciais processos de reorganização não podemos mais do que reconhecer que este último alimentou (não sem as suas devidas distorções) todo o processo clandestino nas fábricas e nos grupos de vanguarda que restaram e que seriam estes elementos que fariam parte da vanguarda do ascenso de finais dos 70.

O movimento estudantil levantou nas ruas e em todos os principais embates da luta de resistência a consigna “Abaixo a Ditadura”. Ainda que realizada do ponto de vista da agitação, como nas explosões da UNB em 68 em protesto contra a morte do estudante Edson Luis, essa consigna poderia cumprir um papel fundamental dez anos depois como um exemplo programático chave na luta contra a ditadura, pois armava as massas contra a “pacífica transição democrática”. Quando um novo ascenso operário desafiava o regime e a sorte da burguesia, a consigna de “Abaixo a ditadura” continha um ingrediente fundamental contra os “autênticos” reformistas e seus seguidores: apontava para a ação insurrecional das massas contra a ditadura em contraposição à estratégia da burocracia lulista que buscava (e conseguiu) adaptar a classe operária à auto-reforma “por cima” do regime.

Desta maneira, a grande intensidade na qual se desenvolveu o ascenso do pré-64 alimentou todos os capítulos da resistência. Até 68, os estudantes cumpriram um papel destacado concretizando não somente aspectos de um programa, mas também o que desde a nossa corrente defendemos como a aliança operário-estudantil.

2. Resistências

“À classe operária, que dá sentido à nossa luta, nós nos dirigiremos reforçando os laços que reforçarão cada vez mais o movimento que derrubará o regime opressor.” [5]

Do ponto de vista do movimento dos trabalhadores, “Entre 64 e 67, as mobilizações foram parciais, sem ameaçar diretamente as bases de estabilidade do governo. As fermentações no seio da classe operária revelavam sua revolta contra a política econômico-financeira implantada com o golpe, o arrocho salarial sobretudo...” [6]. O movimento estudantil acompanha em certa medida esta dinâmica, sendo 68 o ano decisivo: “No primeiro momento, expressando à sua maneira a insatisfação generalizada da pequena burguesia, o movimento estudantil lançou suas bases e cresceu. No segundo momento [...] passou a se definir e se organizar de forma autônoma, em função de uma dinâmica interna que o fazia privilegiar a necessidade da aliança com uma outra classe social, o proletariado”. [7]

Exemplo significativo das contradições que envolviam o movimento estudantil está não em suas lutas nas “barricadas universitárias”, mas sim na capacidade que possuía o movimento de se ligar aos trabalhadores, e não somente no sentido da construção de organizações de vanguarda, tarefa esta que não esteve ao alcance da época. Segundo relatos de José Ibrahim, importante protagonista das greves de Osasco em 68, um dos aspectos chave para definir a correlação de forças das ocupações de fábricas foram os enfrentamentos e a presença dos estudantes nos rumos da política nacional e no combate à ditadura.

Concretamente: “Em São Paulo, por exemplo, onde o movimento estudantil foi às ruas em 66, levantando slogans que também diziam respeito à classe operária (e de onde as organizações políticas de composição estudantil buscavam adesões de operários), desenvolveu-se a oposição sindical, organizando principalmente os quadros operários mais combativos do período pré-64.” [8]. O oposto também é verdadeiro: se considerarmos os rumos que tomaram a resistência, a adoção da estratégia guerrilheira por parte de uma grande parcela das direções políticas estudantis contribuiu para desconectar os débeis fios que ligavam a vanguarda aos setores de massa e às suas reivindicações. O mesmo Ibrahim afirmará também que os guerrilheiros cumpriram um papel fundamental para se retirar do verdadeiro combate de massas.

***

O novo movimento estudantil que, como dissemos, começa a ressurgir hoje não tem tarefas tão parecidas às de 68. Mas ainda que não se tenha a “corda no pescoço”, são determinantes os avanços que se devem conquistar:

A aliança operária e estudantil como componente fundamental não é meramente um acessório ou uma “saudação” a 68. Um dos elementos que garantiu a intensa vitalidade de 1968 foi não somente a profunda ligação com a “grande política” e o “debate estratégico” (qual o caráter da revolução!?), mas também as reivindicações operárias.

Essa debilidade do movimento estudantil atual é talvez uma das principais questões que o encarcera no corporativismo reformista que muitas vezes não ultrapassa a calçada da universidade; pelo contrário, se concretiza na defesa da universidade como ela é hoje. Um programa “reformista” para a universidade de classes não pode responder aos mínimos aspectos necessários para uma profunda transformação de suas funções, sua estrutura e sua composição social, para colocá-las a serviço dos interesses da classe trabalhadora e do povo pobre.

[1] Ver Estratégia Internacional Brasil nº 2.

[2] 1º de maio, nº 5, janeiro de 1971.

[3] Cf. Celso Frederico, A esquerda e o movimento operário 1964/1984, Vol. 1, Novos Rumos, 1987, pág 52. Afirma ainda sobre os resultados do processo de radicalização que “Nessa perspectiva insurrecional, a luta contra a ditadura desencadearia uma radicalização crescente nas fileiras oposicionistas. As denúncias contra as leis repressivas do governo (1964-66) cederam lugar às agressivas passeatas estudantis (1966/68). Em fins de 1968, a principal forma de resistência era a guerrilha urbana”.

[4] Idem, pág. 183.

[5] Luiz Eduardo Merlino, militante trotskista do Partido Operário Comunista, assassinado pela ditadura em 1971.

[6] Idem, pág. 142.

[7] Idem, pág. 157.

[8] Idem, pág. 163.


http://www.ler-qi.org/


Vanguarda e movimento estudantil em 1968


Por Daniel Matos
, Luis Siebel

O movimento estudantil que começa a ressurgir no Brasil ainda está muito longe de debater qual é o caráter da revolução brasileira e “que fazer?” frente a isso. O objetivo deste artigo, fruto de reflexões ainda em curso, é contribuir para entender como se formaram aquelas concepções estratégias, do “espírito de época” de 1968 e extrair algumas conclusões. Em seu sentido de resistência à ditadura militar constituiu-se em um profundo processo no interior de luta de classes partindo de suas experiências concretas e que moldaram sua luta mediante distintas estratégias para a revolução, marcadas principalmente pelas experiências da revolução chinesa e cubana.

No pré-64, a hegemonia política no movimento estudantil era partilhada pelas correntes que defendiam o nacionalismo burguês, apoiando-se nas juventudes católicas (Ação Popular - AP) e no PCB, que defendia o “socialismo por vias pacíficas”; apoiavam assim o projeto desenvolvimentista de Goulart. Após o golpe, segue-se uma derrota que logo dá lugar a um ciclo ascendente de lutas estudantis até 68 com grandes manifestações de massa, sendo fechado pelo “golpe dentro do golpe” com o AI-5 e a ascensão de Médici.

As direções políticas ligadas ao PCB e ao janguismo, após o golpe, concluíram que a derrota havia se dado em função do pacifismo do PCB e passaram a ser progressivamente influenciados pelo militarismo guerrilheiro que emanava das revoluções cubana e chinesa. O PCB perdeu toda a sua expressão política na vanguarda e uma das tentativas de “corrigir” os erros foi definida pela “luta de massas” contra a ditadura [1]; na verdade era uma nova sinalização para os setores “democráticos” da burguesia a resistir pacificamente (MDB) e traduzida para o movimento operário e estudantil como lutar dentro da “legalidade da ditadura”, aceitando a intervenção nos sindicatos e a lei Suplicy [2], conciliando com os “pelegos” (agentes da ditadura) etc.

Em 1967, numa reunião clandestina da UNE, debatiam-se as duas principais tendências do m.e., a AP e o bloco das Dissidências do PCB (DIs) com a Polop: “Ao referir-se à situação nacional, tanto uma como a outra das cartas da UNE atribuíam a vitória da direita, em abril de 1964, às ‘ilusões reformistas’ que levaram o movimento popular a acreditar nas modificações parciais e pacíficas, com base na falaciosa ‘suposição de que a burguesia brasileira tivesse interesses contraditórios com o imperialismo’” [3] Um outro ponto era “consenso”, mas não mero detalhe: “Os estudantes não tem condições, por si sós, de colocar em xeque o regime” [4].

Um dos grandes debates da época se resumia à política da então corrente majoritária do m.e., a AP, que defendia a radicalização (os fatos políticos) em oposição às “lutas específicas”, bandeira das DIs-Polop: “A ditadura havia posto os partidos na ilegalidade e cassado os políticos. Estes não tinham sido capazes de criar uma oposição; tentaram com a Frente Ampla mas não deu certo, de uma só canetada os militares acabaram com ela. Por isso o m.e. representava para a sociedade a grande referência política contra a ditadura, e por isso a AP começou a sonhar em derruba-la com o MCD [5], a partir da pressão das faculdades.” [6]

A primeira influência assimilada pela AP até 67 foi o foquismo, o que levava a desvalorizar a importância das reivindicações que poderiam mobilizar a massa dos estudantes e os levariam a se aliar com a classe operária, como a luta pela democratização do acesso à universidade contraposta aos acordos da ditadura entre o MEC e o USAID; - expressava uma concepção de que o m.e., por si mesmo, poderia derrubar a ditadura.

Nesse sentido, até 67 a linha predominante nas DIs de “ir às faculdades” expressava uma posição correta de contrapor o vanguardismo à necessidade de mobilizar as massas, ainda que também expressava certa vacilação e influência do pacifismo-reformismo do PCB. No curso da luta, o bloco DIs-Polop desenvolveu e consolidou tendências foquistas e guerrilheiras: “É necessário aproveitar a massa avançada , que participa de todas as manifestações do m.e. para fazer propaganda de uma organização clandestina no nível do m.e.” [7]. De tal modo, o bloco DIs-Polop, no decorrer de 67-68, tendeu a transformar algumas de suas práticas estudantis em ensaios para a preparação de formas vanguardistas e militaristas.

Estratégias da revolução: “Nada mais vamos esperar”

Contraditoriamente, o “corte estratégico” produzirá na AP o efeito oposto. Enquanto o bloco DIs-Polop rumará para a concepção foquista, a AP passará por um processo que a ligou ao PC Chinês e a transformou em maoísta; passando a defender a “guerra popular prolongada” baseada num partido-exército de massas camponesas em detrimento do vanguardismo militar típico do foquismo cubano, segundo a concepção de Mao de que a política subordina o militar. Essa “inversão de papéis” entre a AP e as DIs-Polop foi uma das marcas fundamentais do debate que se fazia na vanguarda.

Marighella, histórico membro do PCB , que nesse período liderou a fundação da ALN, dissidência mais forte do PC e que tinha maior peso entre as DIs do m.e., passou a defender que “a guerrilha incorporou-se definitivamente à vida dos povos como a própria estratégia de sua libertação, o caminho fundamental, e mesmo único, para expulsar o imperialismo e destruir as oligarquias, levando as massas ao poder. Tal formulação do problema, como seja o do papel estratégico da guerrilha, não surgiu casualmente e sim porque a revolução cubana o introduziu no cenário da história” [8].

Ainda mais extremadas eram as definições da VAR-Palmares: “o regime militar significou ‘o fim da era política’ e, portanto, ‘estão fechadas as portas para um trabalho legal, de longa duração, visando educar a classe operária’” [9]. Esse exemplo era expressão da vulgarização militarista extremada que fazia Debray das concepções de Che Guevara.

A ruptura com o pacifismo do PCB não significava uma crítica à estratégia de conciliação de classes. Pelo contrário, é uma crítica ao “socialismo por vias pacíficas” que passa a hegemonizar os PCs após o XX Congresso do PCUS em 1956, mas que se limita a retomar as velhas concepções etapistas levadas à frente pelas revoluções cubana, chinesa, vietnamita e anti-coloniais na África, sem tirar as lições necessárias da dinâmica tomada dessas revoluções. Daí que a mudança dos métodos “pacifistas-reformistas” para os métodos “militaristas-guerrilheiros” não foi acompanhada pela mudança da estratégia de conciliação de classes para uma estratégia de independência política em relação à burguesia.

Por sua vez, a Polop expressava a influência de idéias trotskistas que já tinha desde antes do golpe, combatia a noção de uma “burguesia progressista” como sujeito de uma “primeira etapa” da revolução, de caráter “democrático e antiimperialista”; suas teses não assumiram expressão de massa, mas sua influência ideológica nas correntes do m.e. gerava nas direções estudantis uma desconfiança muito maior em relação a “setores progressistas” da burguesia do que tinham as direções das organizações políticas que estas representavam em seu conjunto.

Só uma estratégia bolchevique, que preparasse pacientemente a insurreição armada das massas proletárias em aliança com os camponeses pobres, que lutasse pela expropriação da burguesia e do latifúndio, seria realmente capaz de derrubar a ditadura responder às demandas das massas exploradas e oprimidas pelo capitalismo. Para levar a cabo essa estratégia, era imprescindível a construção de um partido revolucionário da vanguarda operária, democraticamente centralizado, organicamente ligado às massas, em combate contra as estratégias etapistas e guerrilheiras que não podiam mais que levar à o movimento de 1968 no Brasil à derrota; ou que geraram revoluções deformadas como a cubana e a chinesa que, mesmo tendo expropriado a burguesia a partir de uma enorme conquista revolucionária das massas, terminaram constituindo Estados operários degenerados que posteriormente deram lugar à restauração do capitalismo.

A ausência da de uma “estratégia bolchevique” levou a que os setores mais avançados do m.e. da época, que demonstravam uma heróica abnegação e combatividade ao preferirem militar clandestinamente e correr o risco da tortura e do assassinato ao invés de desfrutar das benesses do consumismo proporcionado pelo “milagre brasileiro” que cooptava em massas as classes médias”, não fossem capazes de forjar uma aliança sólida e duradoura com os setores do movimento operário que iniciavam um processo de auto-organização em comissões de fábricas e oposições sindicais contra os pelegos da ditadura, tendo sua expressão mais aguda nas grandes greves de Osasco e Contagem. Pelo contrário, levou a que estes setores do m.e. se isolassem nas guerrilhas que foram massacradas pela ditadura. O próprio José Ibrahim, presidente do sindicado de Osasco na época, assim avalia ou erros cometidos: “Na minha opinião o que destruiu mesmo a organização interna nas fábricas de Osasco foi a política das organizações armadas – principalmente no caso da VPR e depois da VAR-Palmares – de tirar os melhores elementos do trabalho no movimento de massas consumindo-os na dinâmica interna da organização”. [10] Ainda que seja um balanço parcial, não deixa de expressar o que significou a trágica experiência das guerrilhas.

A modo de conclusão

O novo m.e. que começa a ressurgir no cenário nacional ainda está muito longe de debater qual é o caráter da revolução brasileira; pelo contrário, está profundamente influenciado pela ideologia burguesa “democrática” e também autonomista que marcaram nossa geração. Tão grande é esse retrocesso que trataram de imputar essa ideologia da classe dominante nas universidades e escolas, de que a tragédia stalinista é também a tragédia do bolchevismo, e não a negação das lições da Revolução Russa. O combate aos preconceitos autonomistas no m.e. deve estar a serviço da construção de um partido revolucionário baseado na estratégia bolchevique, para que desta forma, frente a novos ascensos da luta de classes que estão por vir, possamos evitar tragédias semelhantes à que foi levado o movimento estudantil de 1968.

[1] Ver GORENDER, Jacob Combate nas Trevas.

[2] Lei fascista que colocou a UNE e outras entidades na ilegalidade, daí a consigna “A UNE somos nós!”.

[3] MARTINS FILHO, João Roberto Movimento estudantil e ditadura militar (1964 – 1968), p.181.

[4] Carta Política da UNE, set./67, Grêmio de Filosofia da USP.

[5] MCD: Movimento Contra a Ditadura

[6] Abaixo a ditadura, depoimento de Vladimir Palmeira, dirigente da DI-Guanabara, p.62.

[7] Movimento estudantil e ditadura militar (1964 – 1968), p.176.

[8] Cf. ALVES, J. R. A luta armada contra a ditadura militar, Ed. Fundação Perseu Abramo, p.62.

[9] FREDERICO, Celso A esquerda e o movimento operário, Vol. I: A Resistência à ditadura, p.253.

[10] Idem, p.235 e 239. Ibrahim foi membro da VPR e esteve entre aqueles que exilados em troca da libertação do embaixador norte-americano, junto com Vladimir Palmeira, José Dirceu e outros.


Extraído de:
http://www.ler-qi.org/



Maio de 68 na França e o anarquismo


Por Rugai, jornal Pétala Negra (atual Socialismo Libertário)
n° 06 - Maio/2004


Lá se vão 36 daquele famoso e histórico Maio de 68 na França, movimento que mexeu com toda uma geração, e em todo o mundo parece que 68 foi um ano especial. Para nós, anarquistas, foi mais especial ainda porque marcou o ressurgimento do anarquismo no cenário político-social de então. Grande parte do anarquismo brasileiro de hoje tem muito mais a ver com o “espírito” de Maio de 68, do que com o a tradição do sindicalismo revolucionário do início do século ou mesmo do anarco-sindicalismo espanhol.

Um pouco da história...

Ao contrário do que muitos afirmam Maio de 68 não aconteceu por obra do acaso. A França estava vivendo uma crise profunda resultado de vários fatores. No plano político o General De Gaulle permanecia no poder e mantinha um regime semi-ditatorial. O país estava em crise desde a “libertação” em 1945 no fim da 2ª Guerra Mundial, mantendo-se às duras penas. A situação se agravou ainda mais quando a França perde as suas principais colônias, a Argélia e o Vietnã, envolvendo-se em guerras de efeitos desastrosos. Tudo isso constituía o pano de fundo político da crise francesa.

Os efeitos da crise se fizeram mais claros a partir de 67, e chegou-se em 68 com um quadro bastante crítico: salários muito baixos; semana de trabalho de 48 horas; desigualdades salariais entre homens e mulheres; desemprego se alastrando com 600 mil jovens desempregados, sendo que 130 mil deles procuravam emprego há mais de um ano; desigualdades sociais enormes entre Paris e o interior; falta de habitação, proliferação de favelas e falta de infraestrutura. Isso acaba com o mito de que tudo ia bem no plano econômico e o movimento de Maio de 68 foi apenas uma luta por liberdade contra a autoridade. Evidencia-se, na verdade, que a liberdade no capitalismo está condicionada pelo fator econômico, e que sem isso ela é apenas uma bela palavra vazia.

Nas universidades o clima não era melhor. Muitos filhos de camponeses e operários estavam chegando às universidades e não havia vagas para eles. Em janeiro de 68 o ministro de educação declara: “tem estudante demais nas universidades”, e anuncia a seguir o Plano Fouchet para o ensino, que prevê exames de seleção, hierarquização dos estudantes, e desqualificação de diplomas de várias faculdades.

É neste clima que aflora o movimento de Maio de 68 na França. Suas formas políticas evidenciam uma crítica à esquerda tradicional representada pelo Partido Comunista Francês (PCF), alinhado com Moscou, que tinha um caráter estalinista, pendendo para o reformismo em muitos momentos, dotado de uma cara sisuda e de um aparato burocrático terrivelmente desalentador. As análises conjunturais do PCF eram marcadas por um economicismo que fazia do fator econômico o único determinante para tudo. Ficava cada vez mais claro para a juventude que o paraíso soviético era uma grande opressão, das mais terríveis deste século, uma máquina de matar e condicionar pessoas. Isso passou a ser mais evidente ainda com as invasões contra a Hungria em 56 e Checoslováquia em 68.

Muitos analistas tendem a ver em Maio de 68 algo exclusivamente da juventude estudantil. Mas grande parte desta juventude era operária e sofria com a crise e a classe trabalhadora como um todo se mobilizou.

As greves se alastraram pela França, mesmo contra a direção da CGT e isso foi vital para o movimento. As manifestações estudantis, juntamente com o movimento operário, abalaram a França por algumas semanas. Entretanto, apesar desta imensa mobilização de massas, a desorganização, a falta de uma coordenação e o espontaneísmo do movimento demonstraram limites.

O anarquismo que ressurge...

O que reapareceu de fato foi apenas uma parte do anarquismo. A parte que servia para municiar o arsenal crítico que tinha como alvo o partido comunista. Foi assim e, não como projeto e alternativa de sociedade, que apareceu o anarquismo de 68, que muitos chamaram de neo-anarquismo. Notamos a negação total do fator econômico por parte deste neoanarquismo. A impressão que se tem é que a necessidade de responder ao economicismo comunista fez com que se caísse no outro extremo, isto é, o culturalismo, uma vez que a cultura era algo sempre deixado de lado pelo PC. O anarquismo deixou de se preocupar com as questões sócio-econômicas para ficar restrito aos trabalhos culturais. Ou seja, do dogmatismo econômico chegou ao dogmatismo cultural. O efeito disso nos dias de hoje é a concepção geral vigente em grande parte dos meios libertários, que percebe qualquer abordagem econômica como “marxista”.

Isso é um absurdo do ponto de vista histórico no ideário anarquista e reflete o próprio desconhecimento do anarquismo de muitos que pretendem falar em nome do anarquismo. O fator econômico sempre foi o determinante principal para anarquistas como Proudhon, Bakunin, Kropotkin e Malatesta. Bakunin traduziu “O Capital” para o russo e tinha concordância com Marx sobre suas análises econômicas. A divergência aparecia quando se discutia o que fazer para mudar, mas em termos de avaliação as afinidades eram enormes. O anarquista Carlos Cafiero fez a melhor versão popular de “O Capital”, a única elogiada por Marx.

Mesmo considerado como o determinante central, o fator econômico nunca foi visto como o único determinante pelos anarquistas, a relação sempre foi dinâmica e não mecânica como as coisas se colocavam para os PCs. Esse processo de negação de alguns conceitos se repetiu com outros conceitos como classe e materialismo. Quando se ouve falar nisso parece um jargão marxista, quando, na verdade, não existe historicamente monopólio de qualquer corrente sobre estes termos. Eles são próprios do socialismo como um todo, incluindo como correntes do socialismo o anarquismo e o marxismo.

Percebe-se que aquilo que não servia para negar o marxismo dentro do anarquismo foi considerado como “não anarquista”. O conceito de organização também foi pervertido: ao invés de uma organização não burocrática e horizontalizada, escolheu-se a não-organização, o espontaneísmo total; como se organização fosse sinônimo de burocracia e só houvesse um conceito possível de organização. O espontaneísmo converteu no outro lado da moeda da organização autoritária e burocrática.

E quais as referências teóricas deste neo-anarquismo? Herbert Marcuse, Eric Fromm, Sartre e Reich estão entre as maiores referências. Ironicamente todos eles eram marxistas assumidos e foram justamente estes os que impulsionaram muito do novo espírito libertário que aflora em 68! Quem foi o principal figura anarquista de então? Daniel Cohen-Bendit ou “Dany le rouge” como era chamado então. O que faz hoje “Dany lê rouge”? É deputado no parlamento alemão pelo Partido Verde! Perfeitamente integrado ao reformismo e à social democracia! Portanto este anarquismo pouco tem a ver com a tradição anarquista de um Bakunin, de um Malatesta, de um Makchno ou de Durruti.

De positivo em Maio de 68 ficou muita coisa: a valorização da espontaneidade, que é diferente do espontaneísmo; a crítica ao PC; o próprio ressurgir do movimento e de muitas discussões. Por outro lado gerou-se um anarquismo que possui muito de individualismo. A ênfase exclusiva no fator cultural e esquecimento do socioeconômico tirou o caráter classista e militante do anarquismo, transformando-o em muitos casos em refúgio para porra-loucas de todas as espécies, que acham que anarquia é sinônimo de caos e desordem.

Mas não podemos cobrar dos anarquistas de 68 que eles não fossem assim. Eles estavam imersos num contexto histórico que não lhes permitiu agir de outra maneira, ir além, e o que fizeram foi extremamente positivo. Mas passaram-se 30 anos e não podemos deixar de avaliar as insuficiências deste anarquismo que ressurgiu. Do mesmo modo como eles romperam com um passado e com tradições caducas, nós não podemos ficar paralisados e erguendo estátuas para 68, seria uma grande contradição. O medo de se fazer uma autocrítica do anarquismo talvez explique por que muitos até hoje estão dando murro em ponta de faca.

Existem pessoas e grupos que guardam uma concepção – inconsciente certamente - de anarquismo que serve exclusivamente para diversão, prazer e ao invés da propaganda pela ação optam por uma ação que se resume à propaganda. Neste tipo de anarquismo identifica-se o comportamento transgressivo com conduta revolucionária: - Quanto mais louco mais revolucionário é o que muitos parecem querer expressar sem conseguir. Aonde se chega assim? Na revolução individual para o playboy de classe média capaz de somar dinheiro para pagar por seus prazeres e desbloqueios repressivos? Na marginalidade e no isolacionismo para muitos outros grupos? No sucesso de mídia para os antigos “alternativos e transgressores” que se vendem? Ou ainda, no enquadramento num estilo de vida burguês pela necessidade de sobrevivência para outros? Certamente chega-se em muitos lugares, raramente numa militância revolucionária.

Portanto, neste 36 anos de maio de 68, temos mais a refletir do que a comemorar, a menos que se insista no saudosismo.


Veja o jornal:
Pétala Negra # 06 - maio de 2004

http://www.treinoonline.com.br/osl/doc/jornal6.pdf


Maio de 68: Há 40 anos, todo o apoio dos estudantes ao proletariado, e vice-versa


A imagem “http://www.anovademocracia.com.br/41/18b.jpg” contém erros e não pode ser exibida.
Estudantes em frente fábrica da Renault prestam apoio e solidariedade
aos operários que ocuparam a fabrica em uma enorme greve

Durante a ocupação estudantil que tomou de assalto a Universidade de Paris no final do mês de maio de 1968, quem passasse pelo Quartier Latin podia ver, nos muros da eminente instituição, cartazes e murais que enunciavam o que se passava na capital francesa.

O episódio da ocupação da universidade, na época apelidada de Sorbonne — hoje, o termo é usado para designar suas várias instituições —, foi apenas um entre tantos do turbilhão de luminosos acontecimentos daquele mês, e ficou conhecido como "Soviet" da Sorbonne. A forma como se deu a ocupação não costuma ser muito lembrada quando se fala do Maio de 68. Principalmente quando quem fala é a burguesia e seus porta-vozes, interessados em enterrar a memória genuína sobre o que de fato aconteceu naquele período, em Paris e no mundo.

As exclamações exibidas nas ruas evidenciavam, para além de palavras de ordem, uma profunda consciência revolucionária: "Recusamos o papel que nos foi designado, não seremos treinados como cães policiais", "Com os estudantes, contra a ordem".

Houve o célebre cartaz que denunciava as tentativas de neutralizar a força das massas, comparando o reformismo a uma tentativa de sedar o povo com clorofórmio. Um outro, igualmente imortal, mostrava a palavra "capital" sendo esmagada por um martelo, símbolo do operariado.

Os estudantes de então atualizaram uma famosa frase do filósofo iluminista Voltaire — frase que se tornou uma espécie de lema das revoluções burguesas do século XVIII. Não se tratava mais de gritar que o mundo só seria livre quando o último rei fosse enforcado com as tripas do último padre. Naquele momento, a compreensão era aquela expressada nos murais e cartazes espalhados por Paris: "A humanidade só será livre quando o último capitalista for enforcado com as tripas do último burocrata".

O conteúdo desta criatividade politizada e combativa extravasada pelos estudantes parisienses revela que a série de acontecimentos que ficaram conhecidos como o Maio de 68 foi de natureza anti-capitalista. Mais do que isto, o Maio de 68 foi um momento histórico de encontro solidário e luta comum da juventude e do proletariado, unidos contra as instituições burguesas.

Além dos murais e cartazes políticos e agitacionais, naquele mês, naquele ano, dentro e fora dos muros da Universidade de Paris, foram fixados grandes painéis informativos sobre quais fábricas iam sendo ocupadas pelos operários franceses. Os estudantes compreendiam o protagonismo do proletariado na revolução que almejavam e, com entusiasmo, eram solidários às vitórias alcançadas pelos trabalhadores contra seus patrões.

Houve inclusive uma grande passeata que saiu da Universidade de Paris rumo à Renault, no subúrbio da cidade, a fim de cumprimentar os operários que haviam tomado as instalações daquela fábrica de automóveis. A idéia dos estudantes era prestar apoio à luta contra os capitalistas e contra a opressão do Estado burguês.

Em uma grande praça situada à frente da fábrica, os estudantes gritavam: "As fábricas aos trabalhadores!". Os trabalhadores respondiam: "A Sorbonne aos estudantes!".

A união de forças entre o proletariado e a juventude é algo fundamental para o processo revolucionário, e o exemplo dos braços dados entre os estudantes e os trabalhadores franceses no Maio de 68 é um dos legados mais importantes deixados pelos protagonistas daqueles movimentos de natureza anti-capitalista — e eminentemente comunistas.

A reação perdura, até hoje

Sim, o Maio de 68 foi de natureza eminentemente comunista, a despeito dos revisionismos picaretas, das mentiras da historiografia oficial e do trabalho de desqualificação de sua importância para a luta de classes empreendido pelo monopólio mundial dos meios de comunicação — inclusive por suas representações no Brasil.

http://www.anovademocracia.com.br/41/18c.jpg
Já em abril estudantes e trabalhadores franceses
protestavam contra a guerra imperialista no Vietnã

Um trabalho sujo de difamação, feito com a cumplicidade dos oportunistas de plantão. Literalmente de plantão: sempre prontos a atender aos pedidos dos jornais e emissoras de TV para ratificar mentiras, falsificar as memórias e adaptá-las à visão interessante para as classes dirigentes.

Segundo as tentativas de difundir a versão da reação, os acontecimentos do Maio de 68 não passaram de uma rebelião que alterou para sempre a etiqueta burguesa, encabeçada por jovens em busca de liberdade apenas sexual, e ávidos por independência apenas em relação aos seus pais e professores.

Muitas vezes, as páginas publicadas na imprensa ou o tempo de televisão dedicado à memória daqueles acontecimentos se assemelham à cobertura jornalística dos carnavais fora de época dos dias de hoje. Tenta-se apresentar o Maio de 68 como uma baderna bem-vinda à sociedade capitalista, como tumultos desvinculados das questões de classe. Ou seja: algo realizado por anarquistas, existencialistas e libertinos, que deve ser lembrado como um simpático rebuliço comportamental, e nada mais.

Ardilosamente, quando agora se celebram os 40 anos do Maio de 68, a reação tenta minimizar os grandes feitos que os cerca de dez milhões de trabalhadores franceses — dois terços da força de trabalho do país — protagonizaram naquele ano, assim como na época a reação voltou contra o povo toda a fúria do seu ódio de classe, com calúnias, cacetetes e bombas de gás.

Ao mesmo tempo, as falsas memórias denigrem a imagem dos outros protagonistas do Maio, os estudantes. Seus difusores apresentam os combativos e politizados jovens parisienses como românticos ansiosos por reinventar os costumes burgueses, a fim de cair na farra.

Mais do que isso: tentam transformar em mera festa uma revolta de classe, anti-capitalista, e violentamente reprimida pela polícia do general Charles De Gaulle. O general, aliás — e não obstante as mentiras contadas e as verdades sabotadas — foi encurralado pelo povo naquele Maio, obrigado a colocar o rabo entre as pernas, e se esconder em uma base militar alemã.

Indo além, o revisionismo sobre o Maio quer levar a crer que aqueles acontecimentos começaram no dia 1º e se encerram tão logo começou o mês de junho, como se tudo tivesse transcorrido de forma previamente marcada, com início, meio e fim, tal e qual um grande evento da cultura pop. Ilusões bem de acordo com a maneira através das quais os meios de comunicação burgueses desvirtuam o Maio de 68 perante o distinto público.

http://www.anovademocracia.com.br/41/18d.jpg
Operários da Citröem ocupam fábrica, tomam a frente
e seus portões e exibem cartazes combativos

Longe disso. O que aconteceu em 1968 em Paris, em particular, e em outras partes do mundo, mais do que uma reviravolta comportamental, foi um capítulo no desdobramento do processo revolucionário que se iniciou com a Comuna de Paris, em 1871, que instituiu o primeiro governo operário da história no mesmo palco onde um século mais tarde aconteceria o Maio. Há que se ressaltar que o mundo todo vivia a efervescência da Grande Revolução Cultural Proletária na China, sendo Mao Tsetung muito lembrado nas manifestação de Paris, ao lado dos demais líderes do proletariado internacional.

Um processo que teve no meio do caminho seu acontecimento de viragem histórica que abriu uma nova Era: as vitórias dos operários e camponeses na Rússia revolucionária, na Revolução de Outubro de 1917. Um longo processo de resistência, conquistas e politização das massas.

Mas acima de tudo é um processo revolucionário que persiste, e que transcorre debaixo de nossos olhos, em nosso tempo. Entre vitórias e retrocessos, enfrentando a traição, o oportunismo e a truculência da reação das classes dominantes, o povo trabalhador segue firme no seu ideal de emancipação frente ao capital, com a consciência de seu papel de condutor da humanidade rumo à liberdade.

Maio de 68 contou ainda, em seu epicentro, com a longa história do movimento estudantil na França, que remonta às greves que paralisaram a mesma Universidade de Paris ainda no século XV. Marcou uma luminosa época na qual se criou vínculos entre a universidade e a fábrica. Um legado de suma importância e um exemplo de força, solidariedade e organização para as classes populares dos dias atuais.

Na verdade, naquele Maio, os estudantes da Universidade de Paris e de outras partes do mundo se valeram de um instrumental simbólico inspirado no exemplo das lutas operárias, com manifestações, reuniões e ocupações. Um encontro no tempo e no espaço de duas longas tradições de enfrentamentos em defesa das causas democráticas.

Hugo R C Souza

http://www.anovademocracia.com.br/