quarta-feira, 14 de maio de 2008

Vanguarda e movimento estudantil em 1968


Por Daniel Matos
, Luis Siebel

O movimento estudantil que começa a ressurgir no Brasil ainda está muito longe de debater qual é o caráter da revolução brasileira e “que fazer?” frente a isso. O objetivo deste artigo, fruto de reflexões ainda em curso, é contribuir para entender como se formaram aquelas concepções estratégias, do “espírito de época” de 1968 e extrair algumas conclusões. Em seu sentido de resistência à ditadura militar constituiu-se em um profundo processo no interior de luta de classes partindo de suas experiências concretas e que moldaram sua luta mediante distintas estratégias para a revolução, marcadas principalmente pelas experiências da revolução chinesa e cubana.

No pré-64, a hegemonia política no movimento estudantil era partilhada pelas correntes que defendiam o nacionalismo burguês, apoiando-se nas juventudes católicas (Ação Popular - AP) e no PCB, que defendia o “socialismo por vias pacíficas”; apoiavam assim o projeto desenvolvimentista de Goulart. Após o golpe, segue-se uma derrota que logo dá lugar a um ciclo ascendente de lutas estudantis até 68 com grandes manifestações de massa, sendo fechado pelo “golpe dentro do golpe” com o AI-5 e a ascensão de Médici.

As direções políticas ligadas ao PCB e ao janguismo, após o golpe, concluíram que a derrota havia se dado em função do pacifismo do PCB e passaram a ser progressivamente influenciados pelo militarismo guerrilheiro que emanava das revoluções cubana e chinesa. O PCB perdeu toda a sua expressão política na vanguarda e uma das tentativas de “corrigir” os erros foi definida pela “luta de massas” contra a ditadura [1]; na verdade era uma nova sinalização para os setores “democráticos” da burguesia a resistir pacificamente (MDB) e traduzida para o movimento operário e estudantil como lutar dentro da “legalidade da ditadura”, aceitando a intervenção nos sindicatos e a lei Suplicy [2], conciliando com os “pelegos” (agentes da ditadura) etc.

Em 1967, numa reunião clandestina da UNE, debatiam-se as duas principais tendências do m.e., a AP e o bloco das Dissidências do PCB (DIs) com a Polop: “Ao referir-se à situação nacional, tanto uma como a outra das cartas da UNE atribuíam a vitória da direita, em abril de 1964, às ‘ilusões reformistas’ que levaram o movimento popular a acreditar nas modificações parciais e pacíficas, com base na falaciosa ‘suposição de que a burguesia brasileira tivesse interesses contraditórios com o imperialismo’” [3] Um outro ponto era “consenso”, mas não mero detalhe: “Os estudantes não tem condições, por si sós, de colocar em xeque o regime” [4].

Um dos grandes debates da época se resumia à política da então corrente majoritária do m.e., a AP, que defendia a radicalização (os fatos políticos) em oposição às “lutas específicas”, bandeira das DIs-Polop: “A ditadura havia posto os partidos na ilegalidade e cassado os políticos. Estes não tinham sido capazes de criar uma oposição; tentaram com a Frente Ampla mas não deu certo, de uma só canetada os militares acabaram com ela. Por isso o m.e. representava para a sociedade a grande referência política contra a ditadura, e por isso a AP começou a sonhar em derruba-la com o MCD [5], a partir da pressão das faculdades.” [6]

A primeira influência assimilada pela AP até 67 foi o foquismo, o que levava a desvalorizar a importância das reivindicações que poderiam mobilizar a massa dos estudantes e os levariam a se aliar com a classe operária, como a luta pela democratização do acesso à universidade contraposta aos acordos da ditadura entre o MEC e o USAID; - expressava uma concepção de que o m.e., por si mesmo, poderia derrubar a ditadura.

Nesse sentido, até 67 a linha predominante nas DIs de “ir às faculdades” expressava uma posição correta de contrapor o vanguardismo à necessidade de mobilizar as massas, ainda que também expressava certa vacilação e influência do pacifismo-reformismo do PCB. No curso da luta, o bloco DIs-Polop desenvolveu e consolidou tendências foquistas e guerrilheiras: “É necessário aproveitar a massa avançada , que participa de todas as manifestações do m.e. para fazer propaganda de uma organização clandestina no nível do m.e.” [7]. De tal modo, o bloco DIs-Polop, no decorrer de 67-68, tendeu a transformar algumas de suas práticas estudantis em ensaios para a preparação de formas vanguardistas e militaristas.

Estratégias da revolução: “Nada mais vamos esperar”

Contraditoriamente, o “corte estratégico” produzirá na AP o efeito oposto. Enquanto o bloco DIs-Polop rumará para a concepção foquista, a AP passará por um processo que a ligou ao PC Chinês e a transformou em maoísta; passando a defender a “guerra popular prolongada” baseada num partido-exército de massas camponesas em detrimento do vanguardismo militar típico do foquismo cubano, segundo a concepção de Mao de que a política subordina o militar. Essa “inversão de papéis” entre a AP e as DIs-Polop foi uma das marcas fundamentais do debate que se fazia na vanguarda.

Marighella, histórico membro do PCB , que nesse período liderou a fundação da ALN, dissidência mais forte do PC e que tinha maior peso entre as DIs do m.e., passou a defender que “a guerrilha incorporou-se definitivamente à vida dos povos como a própria estratégia de sua libertação, o caminho fundamental, e mesmo único, para expulsar o imperialismo e destruir as oligarquias, levando as massas ao poder. Tal formulação do problema, como seja o do papel estratégico da guerrilha, não surgiu casualmente e sim porque a revolução cubana o introduziu no cenário da história” [8].

Ainda mais extremadas eram as definições da VAR-Palmares: “o regime militar significou ‘o fim da era política’ e, portanto, ‘estão fechadas as portas para um trabalho legal, de longa duração, visando educar a classe operária’” [9]. Esse exemplo era expressão da vulgarização militarista extremada que fazia Debray das concepções de Che Guevara.

A ruptura com o pacifismo do PCB não significava uma crítica à estratégia de conciliação de classes. Pelo contrário, é uma crítica ao “socialismo por vias pacíficas” que passa a hegemonizar os PCs após o XX Congresso do PCUS em 1956, mas que se limita a retomar as velhas concepções etapistas levadas à frente pelas revoluções cubana, chinesa, vietnamita e anti-coloniais na África, sem tirar as lições necessárias da dinâmica tomada dessas revoluções. Daí que a mudança dos métodos “pacifistas-reformistas” para os métodos “militaristas-guerrilheiros” não foi acompanhada pela mudança da estratégia de conciliação de classes para uma estratégia de independência política em relação à burguesia.

Por sua vez, a Polop expressava a influência de idéias trotskistas que já tinha desde antes do golpe, combatia a noção de uma “burguesia progressista” como sujeito de uma “primeira etapa” da revolução, de caráter “democrático e antiimperialista”; suas teses não assumiram expressão de massa, mas sua influência ideológica nas correntes do m.e. gerava nas direções estudantis uma desconfiança muito maior em relação a “setores progressistas” da burguesia do que tinham as direções das organizações políticas que estas representavam em seu conjunto.

Só uma estratégia bolchevique, que preparasse pacientemente a insurreição armada das massas proletárias em aliança com os camponeses pobres, que lutasse pela expropriação da burguesia e do latifúndio, seria realmente capaz de derrubar a ditadura responder às demandas das massas exploradas e oprimidas pelo capitalismo. Para levar a cabo essa estratégia, era imprescindível a construção de um partido revolucionário da vanguarda operária, democraticamente centralizado, organicamente ligado às massas, em combate contra as estratégias etapistas e guerrilheiras que não podiam mais que levar à o movimento de 1968 no Brasil à derrota; ou que geraram revoluções deformadas como a cubana e a chinesa que, mesmo tendo expropriado a burguesia a partir de uma enorme conquista revolucionária das massas, terminaram constituindo Estados operários degenerados que posteriormente deram lugar à restauração do capitalismo.

A ausência da de uma “estratégia bolchevique” levou a que os setores mais avançados do m.e. da época, que demonstravam uma heróica abnegação e combatividade ao preferirem militar clandestinamente e correr o risco da tortura e do assassinato ao invés de desfrutar das benesses do consumismo proporcionado pelo “milagre brasileiro” que cooptava em massas as classes médias”, não fossem capazes de forjar uma aliança sólida e duradoura com os setores do movimento operário que iniciavam um processo de auto-organização em comissões de fábricas e oposições sindicais contra os pelegos da ditadura, tendo sua expressão mais aguda nas grandes greves de Osasco e Contagem. Pelo contrário, levou a que estes setores do m.e. se isolassem nas guerrilhas que foram massacradas pela ditadura. O próprio José Ibrahim, presidente do sindicado de Osasco na época, assim avalia ou erros cometidos: “Na minha opinião o que destruiu mesmo a organização interna nas fábricas de Osasco foi a política das organizações armadas – principalmente no caso da VPR e depois da VAR-Palmares – de tirar os melhores elementos do trabalho no movimento de massas consumindo-os na dinâmica interna da organização”. [10] Ainda que seja um balanço parcial, não deixa de expressar o que significou a trágica experiência das guerrilhas.

A modo de conclusão

O novo m.e. que começa a ressurgir no cenário nacional ainda está muito longe de debater qual é o caráter da revolução brasileira; pelo contrário, está profundamente influenciado pela ideologia burguesa “democrática” e também autonomista que marcaram nossa geração. Tão grande é esse retrocesso que trataram de imputar essa ideologia da classe dominante nas universidades e escolas, de que a tragédia stalinista é também a tragédia do bolchevismo, e não a negação das lições da Revolução Russa. O combate aos preconceitos autonomistas no m.e. deve estar a serviço da construção de um partido revolucionário baseado na estratégia bolchevique, para que desta forma, frente a novos ascensos da luta de classes que estão por vir, possamos evitar tragédias semelhantes à que foi levado o movimento estudantil de 1968.

[1] Ver GORENDER, Jacob Combate nas Trevas.

[2] Lei fascista que colocou a UNE e outras entidades na ilegalidade, daí a consigna “A UNE somos nós!”.

[3] MARTINS FILHO, João Roberto Movimento estudantil e ditadura militar (1964 – 1968), p.181.

[4] Carta Política da UNE, set./67, Grêmio de Filosofia da USP.

[5] MCD: Movimento Contra a Ditadura

[6] Abaixo a ditadura, depoimento de Vladimir Palmeira, dirigente da DI-Guanabara, p.62.

[7] Movimento estudantil e ditadura militar (1964 – 1968), p.176.

[8] Cf. ALVES, J. R. A luta armada contra a ditadura militar, Ed. Fundação Perseu Abramo, p.62.

[9] FREDERICO, Celso A esquerda e o movimento operário, Vol. I: A Resistência à ditadura, p.253.

[10] Idem, p.235 e 239. Ibrahim foi membro da VPR e esteve entre aqueles que exilados em troca da libertação do embaixador norte-americano, junto com Vladimir Palmeira, José Dirceu e outros.


Extraído de:
http://www.ler-qi.org/



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