quarta-feira, 14 de maio de 2008

O maio francês de estudantes e operários


A sucessão dos acontecimentos franceses é, sem dúvida, a mais marcante do maio de 1968, pois foi a que surgiu com maior surpresa, que teve a maior profundidade em provocar um amplo movimento social que se expressou através da greve geral, que provocou a crise política de maior envergadura, e que teve as ações mais insurreicionais, na cidade européia que já foi o epicentro revolucionário de muitos episódios passados.

Os acontecimentos começam em Nanterre, faculdade dos subúrbios de Paris, onde os estudantes fazem um panfleto e um abaixo-assinado contra a separação por sexos nos dormitórios da residência estudantil. Vinte e nove estudantes são expulsos da residência em punição. E os estudantes descobrem que dentre estes, cinco são "inocentes", ou seja, são estudantes ativistas de esquerda, mas totalmente ausentes da agitação "sexual", e passam a denunciar a existência de listas negras e de policiais à paisana. No dia 26 de janeiro, fazem uma manifestação exibindo fotos de agentes policiais infiltrados entre os estudantes, o reitor chama a polícia e os estudantes resistem. Foi apenas uma primeira batalha.

Nos colégios secundaristas e faculdades se organizavam os CVB, Comitês Vietnam de Base. Em 21 de fevereiro, tomam o consulado sul-vietnamita em Paris, que é pichado e alçada uma bandeira da FLN. Em 20 de março, os CVB atacam a sede do American Express, cujas vitrines são estilhaçadas, alguns estudantes são presos, entre eles um de Nanterre.

Daniel Cohn-Bendit e um pequeno grupo convocam uma assembléia para defender os estudantes presos. Reúnem-se cerca de 800 estudantes que decidem ocupar o edifício. Os 142 que passam lá a noite decidem chamar-se Movimento 22 de março.

O mês de maio começa com um enorme desfile de primeiro de maio, onde a CGT, controlada pelo partido comunista, impõe com seu serviço de ordem a proibição da participação dos anarquistas, trotskistas, maoístas e a extrema-esquerda em geral. Há choques com o serviço de ordem que produzem feridos leves.

No dia 2 de maio, o reitor de Nanterre, com o crescimento da agitação, decide pedir ao ministro da educação o fechamento da faculdade por uns dias. No dia seguinte, os estudantes de Nanterre vão à Sorbonne, no centro de Paris, onde se reúnem em assembléia. Nesse dia começaria a insurreição.

Na assembléia na Sorbonne reúnem-se os "enragés" de Nanterre, do 22 de Março, com a vanguarda da Sorbonne, entre os quais estava Alain Krivine, da JCR (Juventude Comunista Revolucionária), de orientação trotskista. No final da tarde, o ministro da Educação, Alain Peyrefitte decide desocupar a Sorbonne com a polícia. A polícia vai prendendo centenas das lideranças que se reuniam na faculdade, quando ocorre o inesperado. A multidão começa a se reunir em torno dos carros da polícia e a protestar. Nesse levante espontâneo começou a rebelião de maio. A polícia, surpreendida por gente que protesta por todos os lados, sai distribuindo cacetadas que atingem todos que estão andando pelo bairro. A multidão reage, voam pedradas e gás lacrimogêneo. Seiscentos estudantes são levados presos e a França lê na manhã seguinte nos jornais os relatos da brutalidade policial. O jornal "L'Humanité", do Partido Comunista, se junta, entretanto à direita, para condenar os "agitadores irresponsáveis".

No mesmo dia 3, uma sexta-feira, Alain Geismar, presidente do SNESup, um sindicato de professores universitários, chama a greve geral em todas as universidades contra o fechamento e a repressão em Nanterre e na Sorbonne. No domingo, quatro dos estudantes presos são condenados à prisão por dois meses, e outros a multas.

Na segunda-feira, sob o apelo de uma manifestação chamada pela UNEF, presidida por Jacques Sauvegeot, ligado ao PSU de Mendès-France, mesmo que proibida pelo governo, vão se agrupar num centro de Paris coalhado de policiais, os estudantes e o povo. As dez horas da manhã já são mil e quinhentos no Boulevard Saint-Michel e a polícia lança as primeiras bombas, enquanto um cortejo sai por Paris gritando "Libertem nossos companheiros". A bola de neve rola. Às três horas da tarde já são levantadas as primeiras barricadas. No ato proibido da UNEF, as quatro da tarde, definem-se as reivindicações do movimento: reabertura das faculdades, libertação dos presos, e em seguida partem para a Sorbonne numa passeata de quinze mil pessoas e no caminho se chocam com o bloqueio policial, levantam barricadas e as sustentam contra a polícia até as 9h30 da noite.

Em 7 de maio, a UNEF e o SNESup chamam nova manifestação, reúnem-se vinte mil em Denfert-Rocherau, e quando a passeata sai já são quarenta mil. De onde vêm? Uma adesão importante vem dos colégios secundários onde comitês de luta chamam à greve, a outra vem do povo. O governo decide manter o perímetro da Sorbonne vetado aos manifestantes que desfilam por trajetos decididos no calor da disputa, é o dia em que passam defronte do parlamento gritando "o poder está nas ruas", ganham o Champs-Elysées, para terminar ao pé do Arco do Triunfo onde cantam a Internacional. Ao final a ordem de dispersão da UNEF não é seguida por milhares de manifestantes que levantam barricadas e combatem a polícia até as três da madrugada.

No dia seguinte pela manhã, não só em Paris, mas em diversas cidades os estudantes estão nas ruas. Em Paris chove. Os estudantes fazem uma passeata e depois se dispersam, sob protestos de alguns setores, convocando uma nova e decisiva manifestação para sexta-feira, 10 de maio.

Esse dia começa com os estudantes secundaristas fazendo passeata pelos colégios, ao meio dia já são cinco mil. Mas é após a manifestação das 18:30, que os trinta mil manifestantes, são impedidos de ir para a Sorbonne e para a margem direita (região rica) da cidade. É nesta noite que se decide a tomada do bairro, o Quartier Latin, com barricadas. As rádios transmitem ao vivo para toda a França a batalha noturna.

Esta que foi a noite decisiva, não contou com o apoio e participação de todas as tendências do movimento. O 22 de março, de Conh-Bendit, e a JCR, de Alain Krivine, eram os principais grupos organizados que estavam presentes. Outros, como os maoístas da UJCml, de Robert Linhart, que haviam proposto a ida dos estudantes aos bairros operários, retiram-se dessa noite considerando que a "pequena-burguesia" (os estudantes) entravam numa armadilha do governo. Da mesma forma a FER, trotskistas adeptos do PCI de Pierre Lambert, se retiram em passeata do Quartier Latin, após não terem participado da manifestação da tarde, pois mantiveram um comício próprio de sua tendência no auditório da Mutualité. Mais do que os militantes organizados eram centenas os jovens e populares sem participação política anterior que se somavam aos combatentes daquela madrugada, em que os moradores desciam de seus apartamentos para ajudar a erguer as barricadas nas ruas. São, sobretudo, automóveis tombados as dezenas, que se incendeiam quando a polícia atira bombas. São dezenas de investidas e recuos da polícia sob o fogo de coquetéis molotovs e de projéteis atirados dos prédios. O governo decidido a não permitir que Paris despertasse com barricadas só conseguirá destruir a última delas às 5h30 da manhã.

No dia seguinte pela manhã as três centrais sindicais, CGT, CFDT e FO se reúnem com a UNEF e o SNESup e decidem convocar uma greve geral para segunda-feira, dia 13 de maio, com uma marcha em Paris. À noite, o primeiro-ministro George Pompidou anuncia um recuo do governo com a reabertura da Sorbonne e a revisão das condenações dos quatro estudantes presos.

Na segunda-feira os manifestantes serão, segundo as centrais, cerca de um milhão. A Sorbonne é reaberta e torna-se o centro de uma comemoração onde a "imaginação tomava o poder".

No dia seguinte, o presidente De Gaulle parte para uma viagem à Romênia. À tarde, em Nantes, na empresa estatal Sud-Aviation, dois mil operários em greve ocupam a fábrica e sequestram a diretoria.

Na quarta-feira, o comitê de ocupação da Sorbonne envia um telegrama de apoio à Sud-Avation ocupada. Perto de Rouen, mais 4 mil operários da Renault também ocupam a fábrica e tomam sua diretoria. No final da tarde o teatro Odéon é ocupado e um grande cartaz é colocado em sua entrada: "Quando a Assembléia nacional torna-se um teatro burguês todos os teatros burgueses devem se tornar assembléias nacionais!".

Na quinta-feira, dia 16, as ocupações se espalham, em todo país dezenas de fábricas são ocupadas pelos operários, inclusive a Renault de Paris (Billancourt), com 23 mil operários. Na sexta-feira, os comitês operários e estudantis se visitam, apesar dos dirigentes sindicais da CGT, braço sindical do PC, tentarem impedir o contato entre estudantes e operários, e as greves aumentam ainda mais. O metrô decide parar.

No sábado, das minas de carvão à indústria química, dos trens ao correio, já se estimam dois milhões de grevistas em todo o país. O presidente retorna ao país.

No domingo, os estudantes em assembléia recebem intelectuais como Sartre, Bourdieu e Châtelet para debaterem o movimento. A nova semana se inicia com seis milhões de grevistas. Cohn-Bendit vai de visita para a Alemanha e não recebe permissão de reentrada na França. No dia 22 de maio, em protesto milhares de manifestante fazem uma nova noite de barricadas. Dia 23, novos combates no Quartier Latin, no país os grevistas chegam a 10 milhões.

No dia 24, véspera do aniversário da Comuna de Paris, é marcada uma nova manifestação. Neste dia, pela primeira vez, De Gaulle se dirige à nação pela TV e se propõe a um referendo.

A manifestação do dia 24 coloca em questão o controle da cidade. A sede da prefeitura, edifício histórico que, ao ser tomado, decidiu a vitória da Comuna de Paris, em 1871, permaneceu protegido, e os manifestantes se dedicaram a incendiar a Bolsa, e de passar diante dos ministérios sem ocupar nenhum. Uma delegacia de polícia é atacada e incendiada. Morre um civil em Paris e um policial em Lyon. O conflito eclode em diversas cidades francesas.

No dia seguinte, começam os acordos de Grenelle, nome da rua onde se situava o Ministério dos Assuntos Sociais. Embora as greves e ocupações fossem em sua quase totalidade espontâneas, logo o PC e os aparelhos sindicais buscam "pelo alto" a retomada do controle. O governo patrocina as reuniões de Grenelle, entre sindicatos patronais e de trabalhadores, e acerta-se um aumento geral de 10% dos salários como forma de se parar a greve geral no país.

No dia 27 de maio, quinze mil operários em assembléia em Billancourt recebem a proposta defendida pelos dirigentes sindicais e não a aceitam, o mesmo ocorrendo em todas as grande fábricas do país. O Partido Comunista, que se opusera às greves e atacara violentamente o movimento estudantil, torna-se o defensor da aceitação do acordo salarial que as assembléias haviam rejeitado.

No momento em que este impasse se instaura no movimento social, De Gaulle retoma a ofensiva, após uma viagem ao comando militar francês na Alemanha, para assegurar-se do apoio militar, organiza uma manifestação em seu apoio em 30 de maio, dissolve a assembléia nacional e convoca eleições para dentro de um mês. Após a marcha pró-governamental de, ao menos, um milhão de pessoas, a polícia passa a agir violentamente, desocupando as fábricas e realizando prisões em massa. Em 10 de junho, um jovem é morto pela polícia e as barricadas cobrem novamente o Quartier Latin. Nos dias que se seguem dois operários são assassinados durante a repressão. Em Paris, violentos enfrentamentos, delegacias depredadas, prisões em massa. Em 12 de junho, o Conselho de Ministros decide a dissolução oficial de uma série de grupos de extrema-esquerda, entre os quais a JCR, o 22 de março, a UJCML, a FER, etc.

Em 30 de junho, De Gaulle, aos 78 anos, ganha as eleições legislativas e prepara seu sucessor Georges Pompidou. Após a aceitação dos acordos de Grenelle pelo PC, o movimento social sofrera a ação aberta do freio da CGT, que antes também houvera, mas desta vez eles acenavam com um aumento salarial de 10%. Perdido o momento da crise revolucionária, quando não havia uma alternativa de poder, na recusa do PC e da CGT em construí-la, isso terminou por desnortear o ímpeto do levante espontâneo de massas que tomava proporções insurreicionais, conduzindo-o para o isolamento da vanguarda mais combativa que continuou ocupando fábricas enquanto a maioria dos trabalhadores tinha suas greves desmontadas uma a uma em troca do aumento salarial, recurso que impediu a derrubada do governo.

Ecos de 68

O balanço de 68 foi o de um poderoso movimento social, que desafiou o Estado e a esquerda oficial do PC, mas que não conseguiu construir uma alternativa de poder durante o levante e uma alternativa política que sobrevivesse ao período do refluxo. Nesse momento pós-68 as derivações guerrilheiristas foram a via de destruição de um setor da vanguarda, na América Latina, na Europa Ocidental, no Japão e nos Estados Unidos, onde a busca de alternativas ao reformismo contra-revolucionário dos partidos comunistas se radicalizou no método, através de formas ultra-esquerdistas, mas mantendo as concepções teóricas e programáticas do stalinismo.

A derrota política do movimento de 68, - afinal De Gaulle ganhou as eleições, Nixon se elegeu, as ditaduras dominaram a América Latina, duzentos estudantes foram mortos no México e o exército soviético ocupou a Tchecoslováquia - representou um movimento de superação das velhas direções e de ausência de novas alternativas amadurecidas. A carência de uma alternativa revolucionária agravou-se. Do ponto de vista social, houve conquistas, como o aumento geral de salários na França, que embora muito aquém do questionamento radical do poder que existia, significou que a burguesia sufocou o movimento fazendo concessões e não podendo esmagá-lo.

As conquistas sociais de 68 enraízam-se também na ampliação da politização cultural, ou seja, da crítica do poder, para os mais amplos campos. A ordem familiar patriarcal e o machismo são postos em questão ao mesmo tempo que a estrutura educacional ou psiquiátrica, assim como todas as hierarquias do saber. Os direitos da democracia cultural radical, da livre opção sexual, da liberdade de crítica, inclusive no âmbito acadêmico, de liberdade estética e cultural, ampliam-se em diversos âmbitos das sociedades ocidentais.

Registre-se, entretanto, que, nas últimas décadas, tem havido um recuo significativo nestes direitos, não só no Oriente com os fundamentalistas islâmicos, como também nos países ocidentais, com os fundamentalistas evangélicos, católicos, ou judeus, todos empenhados na luta contra a liberdade cultural.

A guerra contra as drogas é uma outra face pós-68 de uma empreitada inquisitorial que repete a aliança do começo do século, na época da Lei Seca, dos aparelhos repressivos com a burguesia financeira do narcotráfico e os fanáticos do puritanismo para sustentarem um agravamento, com o proibicionismo deste fim do século, da inquisição moral e da hipertrofia do lucro, da repressão e da violência.

Ao questionarem a esquerda oficial, muitos setores intelectuais derivados de 68 mergulharam no ceticismo, ou no puro arrivismo, com muitos egressos da contestação depois integrados em cargos nos governos. A denúncia da política traidora do stalinismo e da social-democracia derivou em muitos casos para uma negação da possibilidade de uma política operária revolucionária, ou da ação política em geral.

Uma parte da herança ideológica de 68 subsiste, na França e em outros lugares, no fortalecimento do trotskismo. As únicas organizações que se mantiveram no espectro da "esquerda da esquerda" ou da "extrema-esquerda" européia foram basicamente as trotskistas, que apesar de sua crise, têm crescido em patamares inéditos na França e na Inglaterra.


Henrique Carneiro, professor do Departamento de História da USP e membro do Conselho Editorial da Revista Outubro

Bibliografia:

Las luchas estudiantiles en el mundo, Buenos Aires, Galerna, 1969.

GOMEZ, Michel, Mai 68 L'Histoire et les Photos, Paris, Gaignault, 1988. KURLANSKY, Mark,

1968. O ano que abalou o mundo, Rio de Janeiro, José Olympio, 2005.

VILLA, Jose M. Vidal - Mayo 68. La Imaginación al Poder, Barcelona, Bruguera, 1978.

www.pstu.org.br/especial68.asp

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