Por Luis Siebel |
O ano 1968 nunca deixou de criar as mais distintas desavenças em todas as ocasiões em que surgiu como ponto em disputa. Nos seus 40 anos, todas essas vozes foram amplificadas: vemos um Sarkozy discursando que a grande tarefa de seu governo é acabar de vez com as bases criadas em 1968; um líder estudantil das barricadas de Nanterre, Cohn-Bendit, convertido em inofensivo deputado do parlamento europeu “recomendando” aos jovens esquecerem tudo o que se criou ou se abandonou como perspectiva de luta.
Vemos, também no Brasil, vários intelectuais burgueses recomendando as receitas de seus pares de além-mar como resposta aos novos fenômenos de luta estudantil iniciados em 2007; digam o que quiserem, pois 68 não deixará de ser o ano em que a luta de classes se entrecortou com o fim do “dourado” ciclo econômico capitalista depois da II Guerra, cheio daqueles símbolos que inspiram novos combates: as greves de massas, a luta antiimperialista – da Argélia ao Vietnã –, o desenvolvimento da revolução cubana, a primavera da Praga... e no meio disso, estava uma universidade que, como dizemos, era “caixa de ressonância” dos fenômenos da luta de classes.
No Brasil, a luta estudantil se combinou com uma resistência operária que, mesmo em seus momentos mais frágeis, soube se reerguer, e, a exceção do período de 1969-72 – fruto da derrota –, foi ininterrupta em seus fluxos e refluxos até o último grito da ditadura. Aquele movimento tinha como tarefa reconstruir em um período curtíssimo as formas da resistência para passar à ofensiva contra o inimigo que ainda não terminava de se constituir. Se falhou nessa tarefa, nos deixou fragmentos que merecem ser recuperados, debatidos e aprofundados, pois sob todos os aspectos são um exemplo de subversão da “política rotineira” dos setores mais vacilantes do movimento estudantil atual. No ano passado começamos uma reflexão sobre esta questão e queremos aqui aprofundar alguns elementos, tomando essas lições como tarefa militante.
O longo ascenso operário e da luta de classes que se desenvolve no pré-64 foi traído pelas direções do movimento operário [1], sendo que de 1966 a 1968 houve um importante processo de resistência. Como diziam os militantes trotskistas agrupados na Organização Comunista 1°. De Maio, “O pavor da burguesia levou à sua união e a entrega do poder à linha-dura castelista que, durante curto espaço de tempo, enfeixou forças para golpear o movimento de massas, mas logo se viu às voltas com, novas crises, acirramento das contradições inter-burguesas, ameaças e concretizações de novas movimentações de massa.” [2]
1. Idéias
Uma das marcas do processo em todos os âmbitos do movimento operário e estudantil é a pressão para ruptura com a profunda experiência anterior. Os adjetivos serão muitos: pacifismo, reformismo, cupulismo, em suma, todas as correntes de vanguarda buscavam superar o PCB e trabalhavam em criticar as suas bases. Entretanto, ainda que houvesse tendências progressivas que apontavam para um enfrentamento direto contra a ditadura, a parte hegemônica das dissidências assumiu a estratégia da guerrilha, que tem como pressuposto o abandono da luta de massas e do proletariado, e este processo foi interrompido quando do “golpe dentro do golpe” em 68/69.
Explicando: “A crítica à política de alianças proposta pelo PCB era feita tradicionalmente pelos trotskistas há várias décadas. Essa crítica seria retomada no final dos anos 50 e durante toda a década de 60 por diversos grupos de esquerda que então foram se formando.” [3] Soma-se a isso o elemento de que “Após 64 com o golpe militar de direita, o reformismo – representado pela ‘burguesia nacional’ e cujos órgãos, PTB, PCB, PSB, Sindicatos etc., eram sua base social – é alijado praticamente do cenário político”. [4]
Do ponto de vista das organizações políticas do movimento estudantil, o congresso da UNE em 68 era enfático: "Temos uma longa luta pela frente e só agora o movimento estudantil começa a se libertar de fato dos seus vícios de origem, da ideologia das classes dominantes que o alimentou.” Se isso serviu tanto a guerrilha quanto aos iniciais processos de reorganização não podemos mais do que reconhecer que este último alimentou (não sem as suas devidas distorções) todo o processo clandestino nas fábricas e nos grupos de vanguarda que restaram e que seriam estes elementos que fariam parte da vanguarda do ascenso de finais dos 70.
O movimento estudantil levantou nas ruas e em todos os principais embates da luta de resistência a consigna “Abaixo a Ditadura”. Ainda que realizada do ponto de vista da agitação, como nas explosões da UNB em 68 em protesto contra a morte do estudante Edson Luis, essa consigna poderia cumprir um papel fundamental dez anos depois como um exemplo programático chave na luta contra a ditadura, pois armava as massas contra a “pacífica transição democrática”. Quando um novo ascenso operário desafiava o regime e a sorte da burguesia, a consigna de “Abaixo a ditadura” continha um ingrediente fundamental contra os “autênticos” reformistas e seus seguidores: apontava para a ação insurrecional das massas contra a ditadura em contraposição à estratégia da burocracia lulista que buscava (e conseguiu) adaptar a classe operária à auto-reforma “por cima” do regime.
Desta maneira, a grande intensidade na qual se desenvolveu o ascenso do pré-64 alimentou todos os capítulos da resistência. Até 68, os estudantes cumpriram um papel destacado concretizando não somente aspectos de um programa, mas também o que desde a nossa corrente defendemos como a aliança operário-estudantil.
2. Resistências
“À classe operária, que dá sentido à nossa luta, nós nos dirigiremos reforçando os laços que reforçarão cada vez mais o movimento que derrubará o regime opressor.” [5]
Do ponto de vista do movimento dos trabalhadores, “Entre 64 e 67, as mobilizações foram parciais, sem ameaçar diretamente as bases de estabilidade do governo. As fermentações no seio da classe operária revelavam sua revolta contra a política econômico-financeira implantada com o golpe, o arrocho salarial sobretudo...” [6]. O movimento estudantil acompanha em certa medida esta dinâmica, sendo 68 o ano decisivo: “No primeiro momento, expressando à sua maneira a insatisfação generalizada da pequena burguesia, o movimento estudantil lançou suas bases e cresceu. No segundo momento [...] passou a se definir e se organizar de forma autônoma, em função de uma dinâmica interna que o fazia privilegiar a necessidade da aliança com uma outra classe social, o proletariado”. [7]
Exemplo significativo das contradições que envolviam o movimento estudantil está não em suas lutas nas “barricadas universitárias”, mas sim na capacidade que possuía o movimento de se ligar aos trabalhadores, e não somente no sentido da construção de organizações de vanguarda, tarefa esta que não esteve ao alcance da época. Segundo relatos de José Ibrahim, importante protagonista das greves de Osasco em 68, um dos aspectos chave para definir a correlação de forças das ocupações de fábricas foram os enfrentamentos e a presença dos estudantes nos rumos da política nacional e no combate à ditadura.
Concretamente: “Em São Paulo, por exemplo, onde o movimento estudantil foi às ruas em 66, levantando slogans que também diziam respeito à classe operária (e de onde as organizações políticas de composição estudantil buscavam adesões de operários), desenvolveu-se a oposição sindical, organizando principalmente os quadros operários mais combativos do período pré-64.” [8]. O oposto também é verdadeiro: se considerarmos os rumos que tomaram a resistência, a adoção da estratégia guerrilheira por parte de uma grande parcela das direções políticas estudantis contribuiu para desconectar os débeis fios que ligavam a vanguarda aos setores de massa e às suas reivindicações. O mesmo Ibrahim afirmará também que os guerrilheiros cumpriram um papel fundamental para se retirar do verdadeiro combate de massas.
***
O novo movimento estudantil que, como dissemos, começa a ressurgir hoje não tem tarefas tão parecidas às de 68. Mas ainda que não se tenha a “corda no pescoço”, são determinantes os avanços que se devem conquistar:
A aliança operária e estudantil como componente fundamental não é meramente um acessório ou uma “saudação” a 68. Um dos elementos que garantiu a intensa vitalidade de 1968 foi não somente a profunda ligação com a “grande política” e o “debate estratégico” (qual o caráter da revolução!?), mas também as reivindicações operárias.
Essa debilidade do movimento estudantil atual é talvez uma das principais questões que o encarcera no corporativismo reformista que muitas vezes não ultrapassa a calçada da universidade; pelo contrário, se concretiza na defesa da universidade como ela é hoje. Um programa “reformista” para a universidade de classes não pode responder aos mínimos aspectos necessários para uma profunda transformação de suas funções, sua estrutura e sua composição social, para colocá-las a serviço dos interesses da classe trabalhadora e do povo pobre.
[1] Ver Estratégia Internacional Brasil nº 2.
[2] 1º de maio, nº 5, janeiro de 1971.
[3] Cf. Celso Frederico, A esquerda e o movimento operário 1964/1984, Vol. 1, Novos Rumos, 1987, pág 52. Afirma ainda sobre os resultados do processo de radicalização que “Nessa perspectiva insurrecional, a luta contra a ditadura desencadearia uma radicalização crescente nas fileiras oposicionistas. As denúncias contra as leis repressivas do governo (1964-66) cederam lugar às agressivas passeatas estudantis (1966/68). Em fins de 1968, a principal forma de resistência era a guerrilha urbana”.
[4] Idem, pág. 183.
[5] Luiz Eduardo Merlino, militante trotskista do Partido Operário Comunista, assassinado pela ditadura em 1971.
[6] Idem, pág. 142.
[7] Idem, pág. 157.
[8] Idem, pág. 163.
http://www.ler-qi.org/
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