n° 06 - Maio/2004
Lá se vão 36 daquele famoso e histórico Maio de 68 na França, movimento que mexeu com toda uma geração, e em todo o mundo parece que 68 foi um ano especial. Para nós, anarquistas, foi mais especial ainda porque marcou o ressurgimento do anarquismo no cenário político-social de então. Grande parte do anarquismo brasileiro de hoje tem muito mais a ver com o “espírito” de Maio de 68, do que com o a tradição do sindicalismo revolucionário do início do século ou mesmo do anarco-sindicalismo espanhol.
Um pouco da história...
Ao contrário do que muitos afirmam Maio de 68 não aconteceu por obra do acaso. A França estava vivendo uma crise profunda resultado de vários fatores. No plano político o General De Gaulle permanecia no poder e mantinha um regime semi-ditatorial. O país estava em crise desde a “libertação” em 1945 no fim da 2ª Guerra Mundial, mantendo-se às duras penas. A situação se agravou ainda mais quando a França perde as suas principais colônias, a Argélia e o Vietnã, envolvendo-se em guerras de efeitos desastrosos. Tudo isso constituía o pano de fundo político da crise francesa.
Os efeitos da crise se fizeram mais claros a partir de 67, e chegou-se em 68 com um quadro bastante crítico: salários muito baixos; semana de trabalho de 48 horas; desigualdades salariais entre homens e mulheres; desemprego se alastrando com 600 mil jovens desempregados, sendo que 130 mil deles procuravam emprego há mais de um ano; desigualdades sociais enormes entre Paris e o interior; falta de habitação, proliferação de favelas e falta de infraestrutura. Isso acaba com o mito de que tudo ia bem no plano econômico e o movimento de Maio de 68 foi apenas uma luta por liberdade contra a autoridade. Evidencia-se, na verdade, que a liberdade no capitalismo está condicionada pelo fator econômico, e que sem isso ela é apenas uma bela palavra vazia.
Nas universidades o clima não era melhor. Muitos filhos de camponeses e operários estavam chegando às universidades e não havia vagas para eles. Em janeiro de 68 o ministro de educação declara: “tem estudante demais nas universidades”, e anuncia a seguir o Plano Fouchet para o ensino, que prevê exames de seleção, hierarquização dos estudantes, e desqualificação de diplomas de várias faculdades.
É neste clima que aflora o movimento de Maio de 68 na França. Suas formas políticas evidenciam uma crítica à esquerda tradicional representada pelo Partido Comunista Francês (PCF), alinhado com Moscou, que tinha um caráter estalinista, pendendo para o reformismo em muitos momentos, dotado de uma cara sisuda e de um aparato burocrático terrivelmente desalentador. As análises conjunturais do PCF eram marcadas por um economicismo que fazia do fator econômico o único determinante para tudo. Ficava cada vez mais claro para a juventude que o paraíso soviético era uma grande opressão, das mais terríveis deste século, uma máquina de matar e condicionar pessoas. Isso passou a ser mais evidente ainda com as invasões contra a Hungria em 56 e Checoslováquia em 68.
Muitos analistas tendem a ver em Maio de 68 algo exclusivamente da juventude estudantil. Mas grande parte desta juventude era operária e sofria com a crise e a classe trabalhadora como um todo se mobilizou.
As greves se alastraram pela França, mesmo contra a direção da CGT e isso foi vital para o movimento. As manifestações estudantis, juntamente com o movimento operário, abalaram a França por algumas semanas. Entretanto, apesar desta imensa mobilização de massas, a desorganização, a falta de uma coordenação e o espontaneísmo do movimento demonstraram limites.
O anarquismo que ressurge...
O que reapareceu de fato foi apenas uma parte do anarquismo. A parte que servia para municiar o arsenal crítico que tinha como alvo o partido comunista. Foi assim e, não como projeto e alternativa de sociedade, que apareceu o anarquismo de 68, que muitos chamaram de neo-anarquismo. Notamos a negação total do fator econômico por parte deste neoanarquismo. A impressão que se tem é que a necessidade de responder ao economicismo comunista fez com que se caísse no outro extremo, isto é, o culturalismo, uma vez que a cultura era algo sempre deixado de lado pelo PC. O anarquismo deixou de se preocupar com as questões sócio-econômicas para ficar restrito aos trabalhos culturais. Ou seja, do dogmatismo econômico chegou ao dogmatismo cultural. O efeito disso nos dias de hoje é a concepção geral vigente em grande parte dos meios libertários, que percebe qualquer abordagem econômica como “marxista”.
Isso é um absurdo do ponto de vista histórico no ideário anarquista e reflete o próprio desconhecimento do anarquismo de muitos que pretendem falar em nome do anarquismo. O fator econômico sempre foi o determinante principal para anarquistas como Proudhon, Bakunin, Kropotkin e Malatesta. Bakunin traduziu “O Capital” para o russo e tinha concordância com Marx sobre suas análises econômicas. A divergência aparecia quando se discutia o que fazer para mudar, mas em termos de avaliação as afinidades eram enormes. O anarquista Carlos Cafiero fez a melhor versão popular de “O Capital”, a única elogiada por Marx.
Mesmo considerado como o determinante central, o fator econômico nunca foi visto como o único determinante pelos anarquistas, a relação sempre foi dinâmica e não mecânica como as coisas se colocavam para os PCs. Esse processo de negação de alguns conceitos se repetiu com outros conceitos como classe e materialismo. Quando se ouve falar nisso parece um jargão marxista, quando, na verdade, não existe historicamente monopólio de qualquer corrente sobre estes termos. Eles são próprios do socialismo como um todo, incluindo como correntes do socialismo o anarquismo e o marxismo.
Percebe-se que aquilo que não servia para negar o marxismo dentro do anarquismo foi considerado como “não anarquista”. O conceito de organização também foi pervertido: ao invés de uma organização não burocrática e horizontalizada, escolheu-se a não-organização, o espontaneísmo total; como se organização fosse sinônimo de burocracia e só houvesse um conceito possível de organização. O espontaneísmo converteu no outro lado da moeda da organização autoritária e burocrática.
E quais as referências teóricas deste neo-anarquismo? Herbert Marcuse, Eric Fromm, Sartre e Reich estão entre as maiores referências. Ironicamente todos eles eram marxistas assumidos e foram justamente estes os que impulsionaram muito do novo espírito libertário que aflora em 68! Quem foi o principal figura anarquista de então? Daniel Cohen-Bendit ou “Dany le rouge” como era chamado então. O que faz hoje “Dany lê rouge”? É deputado no parlamento alemão pelo Partido Verde! Perfeitamente integrado ao reformismo e à social democracia! Portanto este anarquismo pouco tem a ver com a tradição anarquista de um Bakunin, de um Malatesta, de um Makchno ou de Durruti.
De positivo em Maio de 68 ficou muita coisa: a valorização da espontaneidade, que é diferente do espontaneísmo; a crítica ao PC; o próprio ressurgir do movimento e de muitas discussões. Por outro lado gerou-se um anarquismo que possui muito de individualismo. A ênfase exclusiva no fator cultural e esquecimento do socioeconômico tirou o caráter classista e militante do anarquismo, transformando-o em muitos casos em refúgio para porra-loucas de todas as espécies, que acham que anarquia é sinônimo de caos e desordem.
Mas não podemos cobrar dos anarquistas de 68 que eles não fossem assim. Eles estavam imersos num contexto histórico que não lhes permitiu agir de outra maneira, ir além, e o que fizeram foi extremamente positivo. Mas passaram-se 30 anos e não podemos deixar de avaliar as insuficiências deste anarquismo que ressurgiu. Do mesmo modo como eles romperam com um passado e com tradições caducas, nós não podemos ficar paralisados e erguendo estátuas para 68, seria uma grande contradição. O medo de se fazer uma autocrítica do anarquismo talvez explique por que muitos até hoje estão dando murro em ponta de faca.
Existem pessoas e grupos que guardam uma concepção – inconsciente certamente - de anarquismo que serve exclusivamente para diversão, prazer e ao invés da propaganda pela ação optam por uma ação que se resume à propaganda. Neste tipo de anarquismo identifica-se o comportamento transgressivo com conduta revolucionária: - Quanto mais louco mais revolucionário é o que muitos parecem querer expressar sem conseguir. Aonde se chega assim? Na revolução individual para o playboy de classe média capaz de somar dinheiro para pagar por seus prazeres e desbloqueios repressivos? Na marginalidade e no isolacionismo para muitos outros grupos? No sucesso de mídia para os antigos “alternativos e transgressores” que se vendem? Ou ainda, no enquadramento num estilo de vida burguês pela necessidade de sobrevivência para outros? Certamente chega-se em muitos lugares, raramente numa militância revolucionária.
Portanto, neste 36 anos de maio de 68, temos mais a refletir do que a comemorar, a menos que se insista no saudosismo.
Veja o jornal:
Pétala Negra # 06 - maio de 2004
http://www.treinoonline.com.br/osl/doc/jornal6.pdf
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